Há de se comemorar (e muito) a saída do Brasil do mapa da fome. É uma grande conquista, sem dúvida. Mas a primeira da longa e dura batalha pela garantia da segurança alimentar dos brasileiros. Nos cálculos da ONU, com base em dados de 2022 a 2024, a taxa de subnutrição no país hoje é inferior a 2,5% da população — limite abaixo do qual uma nação deixa de estar sob risco de fome endêmica.

“Sair do mapa da fome não significa que a gente não tenha nenhuma pessoa em situação de fome”, diz o economista Ricardo Mota, gerente de inteligência estratégica do movimento Pacto Contra a Fome, em conversa com o NeoFeed. Cerca de 8 milhões de mulheres, homens e crianças seguem com os pratos vazios.

Se somados todos os três níveis de insegurança alimentar e nutricional, o número de pessoas sem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente para uma vida saudável, sobe para 64 milhões — aproximadamente 30% da população brasileira. E isso é um descalabro.

“Estamos aqui ponderando uma celebração com a saída do Brasil do mapa da fome com todos os desafios que ainda estão no horizonte”, completa Ricardo. Ele compartilha com Máximo Torero, economista-chefe da FAO, a agência para alimentação e agricultura da ONU, a opinião de que o relatório O estado da segurança alimentar e nutricional no mundo 2025 (SOFI, na sigla em inglês) deve ser lido com “otimismo cauteloso”.

Pelo segundo ano consecutivo, a fome global diminuiu — ainda que na maioria das sub-regiões da África e na Ásia Ocidental tenha aumentado. Cerca de 673 milhões de pessoas (algo em torno de 8,2% da população mundial) não tinham o que comer em 2024 — uma queda em relação aos 8,5%  de 2023 e aos 8,7% de 2022.

Esse progresso foi impulsionado por “melhorias notáveis” no Sul e Sudeste Asiático, bem como na América do Sul, lê-se no documento.

E o Brasil serve de exemplo para o avanço, como destaca Torero em entrevista ao site da FAO. Nenhum país reduziu tão drasticamente e em tão pouco tempo os índices de fome e insegurança alimentar e nutricional quanto nós.

Comparando 2022 - 2024 com o triênio anterior, a fome reduziu 22%, aproximadamente. Ao ir de 18,4% para 13,5%, os dois níveis mais altos de insegurança alimentar e nutricional caíram 26,6%, para 28,5 milhões de pessoas — enquanto no resto do mundo manteve-se estagnada, ilustra Ricardo.

Se considerado apenas o mais grave deles, que agora atinge 3,4% dos brasileiros, a queda foi de quase 50% — quando a média global não chegou a 3%.

Os novos dados da ONU marcam uma virada histórica dos esforços pela soberania alimentar do Brasil. Sete anos depois de termos saído do mapa da fome, nós retornamos a ele em 2021.

"Um ponto importantíssimo é a estabilidade dos resultados", diz Ricardo Mota (Foto: Pacto Contra a Fome)

A volta foi motivada por uma série de fatores, entre os quais a pandemia de covid-19, a desaceleração da economia mundial, a alta inflacionária global e, aqui especificamente, o desmonte de uma série de programas sociais. “Chegamos a 33 milhões de brasileiros em situação de fome… com as pessoas se alimentando de restos de ossos”, lembra Ricardo.

As políticas públicas adotadas nos últimos dois anos e a atuação da sociedade civil foram imprescindíveis para o Brasil retomar o lugar que lhe é devido no combate à insegurança alimentar e nutricional. Mas nada está garantido.

Os desafios são complexos e urgentes. E, como diz o executivo do Pacto Contra a Fome, para funcionar, as iniciativas pela segurança alimentar devem ser de Estado — e não de governo.

“Um ponto importantíssimo é a estabilidade dos resultados. O Brasil, como os outros países, está enfrentando e continuará a enfrentar uma série de fatores, seja a inflação, a mudança climática, as instabilidades políticas… e para garantir o enraizamento das políticas públicas, precisamos manter a opinião pública muito atenta”, defende Ricardo. “A gente vê o quanto a gente consegue mudar as chaves dos indicadores de insegurança alimentar quando a gente tem vontade política.”

Veja a seguir os principais trechos da entrevista do economista para o NeoFeed.

Em sua opinião, o que propiciou a saída pela segunda vez do Brasil do mapa da fome, depois de termos voltado a ele em 2021?
Quando nós saímos do mapa da fome em 2014, estávamos num contexto econômico mundial bastante positivo. Vários fatores externos tornavam a dinâmica econômica a ser mais pujante. Hoje a gente tem o contrário — instabilidades políticas e econômicas, acentuação dos fenômenos climáticos. Tudo isso afeta a produção de alimentos e impacta diretamente a inflação dos alimentos. Ou seja, globalmente, o poder de consumo da população está muito prejudicado. E esses fenômenos também afetam o Brasil. Mas quando a gente olha para outros pontos, como o potencial do indivíduo para acessar o alimento, o Brasil conseguiu ser muito bem-sucedido.

Como?
Com programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. A FAO destaca que iniciativas como essa são a principal alavanca para proteger o poder de compra das populações mais pobres. Nesse sentido, o Brasil se destaca não só pela transferência de recursos, mas por vários fatores muito positivos na proteção do poder de compra da população — como o aumento real do salário mínimo e a queda nas taxas de desemprego.

Mas não basta apenas garantir o acesso à comida. É preciso garantir o acesso a alimentos saudáveis.
Quando a gente fala sobre a proteção do poder de compra da população brasileira, vemos isso refletido nos indicadores de insegurança alimentar grave. Nessa categoria, está o risco do indivíduo não ter dinheiro para comprar o alimento. Já a insegurança moderada e leve refere-se mais à qualidade nutricional e a gente não vê uma evolução na mesma velocidade. A gente está protegendo o poder de compra para garantir o acesso ao alimento, mas não necessariamente ao alimento de qualidade. E a gente precisa olhar para isso com bastante atenção.

"Quando a renda cai, as classes mais baixas tendem a trocar o alimento saudável pelo não saudável"

Esse é um desafio enorme.
Se pensarmos em saúde pública, vemos um problema muito sério acontecendo. Ao analisarmos dados como peso versus estatura na primeira infância, obesidade, doenças crônicas não transmissíveis… e todas as consequências da má alimentação, vemos, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, esse fenômeno se tornando cada vez mais complexo. E ele só piora com o tempo.

Como vencer esse entrave?
A questão não é puramente monetária, mas também de cultura alimentar — que passa, inclusive, por fatores psicológicos. Em comparação aos outros países, até que o Brasil, com o tradicional arroz e feijão, tem um padrão saudável. No entanto, os ambientes alimentares hoje incentivam o consumo de alimentos ultraprocessados. Nesse sentido, em termos de políticas públicas, ainda estamos em estágios muito embrionários.

O que poderia ser feito?
Restringir a venda de alimentos deletérios à saúde no ambiente escolar é uma discussão que estamos tendo no Congresso, por meio de um projeto de lei. Tem ainda a discussão em torno das propagandas desses alimentos, da rotulagem…

E tem ainda a questão dos desertos alimentares.
É um problema porque as populações mais vulnerabilizadas não têm acesso físico ao alimento saudável — independentemente de a pessoa ter ou não recurso para comprar aquele alimento. Então, são vários fatores que vão se somando, cuja consequência é a escolha pelo alimento não saudável. No Brasil, ainda estamos no comecinho desse debate.

Como fazer a alimentação de qualidade chegar até esses locais?
Temos visto alguns programas importantes como o Cozinha Solidária. Em Nova York, um candidato defende a criação de mercados sociais, investidos pelo governo, que tirem os atravessadores do caminho, fazendo com que os alimentos cheguem ao indivíduo com preços mais baixos.

Por mais que se proteja o poder de compra da população, a inflação dos alimentos segue em alta no mundo todo, como apontado pela ONU. Além disso, os ultraprocessados são muito mais baratos do que os não processados ou minimamente processados.
A gente tem analisado a sensibilidade do consumidor às mudanças de preço. Observamos que, quando a renda cai, as classes mais baixas tendem a trocar o alimento saudável pelo não saudável. O mesmo não acontece com as classes mais altas. E isso é superimportante. A inflação brasileira vem afetando o poder de compra e incentivando o direcionamento a alimentos não saudáveis.

Os levantamentos do Pacto Contra a Fome mostram que a maioria dos brasileiros não tem dinheiro para comprar a cesta dita como ideal.
Exato: 70% da população não consegue acessar uma cesta saudável. É o que conversamos… o Brasil conseguiu proteger as famílias mais pobres em termos de acesso ao alimento, mas não conseguiu garantir ainda o aspecto nutricional desse alimento.

Pois é, pode até parecer contraditório, mas uma pessoa obesa pode estar enfrentando algum grau de insegurança alimentar.
Com certeza. A insegurança alimentar nem sempre está associada à aquela imagem tradicional de uma pessoa esquálida, muito magra. Essa é uma virada de chave de percepção.