Há pelo menos duas formas de avaliar a gestão do francês Noël Prioux, de 62 anos, que está deixando o comando da operação brasileira do Carrefour Brasil, depois de quatro anos à frente da rede varejista, no dia 1º de setembro.

Uma delas é ver os números que mostram um crescimento acelerado, que consolidaram a liderança no varejo brasileiro. O grupo Carrefour, avaliado em R$ 37,3 bilhões, passará de uma receita bruta de R$ 50 bilhões, em 2017, para R$ 100 bilhões até o fim deste ano. O número de funcionários saltará também de 41 mil para mais de 100 mil.

Na esteira de sua gestão, Prioux comprou uma série de startups, como o site de receitas Cybercook, a fintech Ewally e o marketplace Cotabest, bem como 28 lojas do Makro e a operação do Big (ex-Walmart), em um negócio de R$ 7,5 bilhões que precisa ser ainda aprovado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

“Acredito que temos de manter essa aceleração. O próximo desafio será a integração do Big”, afirma ao NeoFeed Prioux, que ficará até o fim do ano no comando da operação na América Latina. “Considero também que inovação é um desafio.”

Mas esses dados, todos positivos, contrastam com uma das maiores crise institucionais da história dos 45 anos da rede varejista no Brasil, quando em 19 de novembro do ano passado, no dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre.

A trágica morte de um homem negro teve repercussão nacional e internacional e fez o Carrefour Brasil se mexer para recuperar a imagem e tentar reparar os danos. “Primeiro, foi uma tragédia. E foi um choque brutal para nós. Nunca deveria acontecer esse tipo de tragédia. Mas, infelizmente, foi assim”, afirma Prioux.

Em junho deste ano, o Carrefour Brasil fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que prevê investimentos de R$ 115 milhões nos próximos três anos para ações que combatam o racismo. O dinheiro será gasto em iniciativas de educação, como concessão de bolsas de estudos para pessoas negras, promoção de empreendedorismo entre pessoas negras e aceleração de empresas.

O grupo também terá um programa de estágio e de trainees voltados para negros e ainda pretende acelerar a carreira de 300 profissionais negros que já atuam na companhia. Atualmente, segundo o Carrefour, 63,9% dos funcionários e 54,19% da liderança se autodeclaram pretos ou pardos, além de 31% de seus diretores.

Nesta entrevista, Prioux fala desse episódio, diz o que o Carrefour tem feito para aumentar a diversidade e combater o racismo e analisa os principais desafios que a operação brasileira terá, a partir de setembro, sob comando do francês de Stéphane Maquaire, 47 anos, ex-presidente do grupo na Argentina. Confira os principais trechos:

Foram quatro anos na presidência do grupo Carrefour Brasil. O que marcou a sua gestão?
Quando comecei, o Carrefour era uma empresa de R$ 50 bilhões de faturamento bruto. Já estamos em R$ 75 bilhões e vamos chegar a mais de R$ 100 bilhões com a compra do Big. Tivemos também uma aceleração no Banco Carrefour. Em 2017, o Atacadão movimentava R$ 1,4 bilhão com seu cartão próprio. Agora, está em R$ 12 bilhões. O Carrefour movimentava R$ 17 bilhões e agora está em R$ 26 bilhões. Os funcionários eram 41 mil e agora são mais de 100 mil. E fizemos também algumas aquisições, como a Cybercook, a Ewally e a CotaBest, além de 28 lojas do Makro. A última aquisição foi a do grupo Big. Por outro lado, aceleramos também a oferta de produtos saudáveis e de produtores orgânicos e veganos. A marca própria era praticamente inexistente no Brasil. Agora, temos mais de 3 mil itens.

E quais os desafios que o Carrefour Brasil tem a partir de agora?
Acredito que temos de manter essa aceleração. O próximo desafio será a integração do Big. Considero também que inovação é um desafio. A parte física e a digital estão acelerando muito. Antes, as entregas rápidas eram de até quatro horas. Hoje, algumas startups fazem entregas em 15 minutos. Agora, temos de ter a capacidade de agilizar a empresa e tomar decisões rapidamente. E precisamos testar. Não vamos ganhar todas sempre. Mas temos de ter a determinação de ser o líder da inovação.

Fachada de uma loja do Carrefour

A pandemia, de fato, acelerou a transformação digital nas empresas. Como o Carrefour avançou nessa área?
A primeira coisa foi o lançamento do e-commerce, porque não tínhamos praticamente nada. A nossa plataforma não tinha a parte de alimentos e aceleramos com parceiros, como Cornershop e iFood. Por outro lado, há mais e mais vontade de usar os dados. Precisamos ter uma organização dedicada ao conhecimento do cliente, respeitando obviamente a lei, para ajudá-lo e para oferecer também serviços.

O Carrefour tem algum plano de fidelidade?
O Carrefour tem um sistema de fidelidade, que recompensa os clientes que fazem as compras no Carrefour.

Você está dizendo que quer usar mais dados e um programa de fidelidade é uma forma de conhecer mais o seu cliente. Tem planos nessa área?
Sim, tem razão. O que nós queremos é a personalização. As promoções, antes, eram para todo mundo. Sabemos que há muita diferença e muita diversidade entre nossos clientes e temos de encontrar maneiras de responder as prioridades de cada cliente. Não há outra opção se não conhecer o cliente para fazer isso.

Em entrevista ao NeoFeed, o empresário Abilio Diniz, um dos principais acionistas do Carrefour Brasil e do Carrefour global, disse que Carrefour e Big juntos teriam uma grande força na “omnicanalidade”. E concluiu: “Aguarde, em pouco tempo, vamos surpreender o mercado nessa parte digital”. O que esperar da área digital do Carrefour?
Vamos usar muito mais dados graças a parcerias com fornecedores mundiais que vão nos ajudar a conhecer e a valorizar os clientes. Nossa visão é que, na área alimentar, por exemplo, é muito importante ter lojas. O Atacadão, mais o Carrefour e mais o Big vão ser hubs, onde você usa a loja para entregar produtos. Vamos mostrar que, ao final, é importante ter lojas físicas, digitalização, comunicação personalizada, plataformas e o mundo phigital (físico e digital). Veja a Amazon, que é o líder do e-commerce, e tomou a decisão de ter lojas físicas. Isso é espetacular. Isso demonstra que você precisa ser muito forte nos dois.

Você citou a Amazon, mas se observar o mercado brasileiro, o Magazine Luiza e a Lojas Americanas, que acabou de comprar o Hortifruti, estão entrando também na área alimentar. Até pouco tempo atrás, o concorrente era o Pão de Açúcar. Agora, a competição vem de onde você nem imagina. Como enxerga a competição desses varejistas?
Isso não é uma surpresa. Vamos ter muitos mais competidores na área alimentar. Mas nós temos um tamanho relevante e nós queremos também fazer o contrário (entrar com mais força no digital). Vamos mais e mais entrar na parte digital na parte alimentar e também na parte não alimentar. Considero que a concorrência dá dinamismo para uma empresa. Quando você tem outro tipo de competidor, você tem obrigação de inovar. Por que a Amazon comprou a Whole Foods? Porque na parte alimentar ela era um fracasso total. Vamos ver isso por aqui. De nossa parte, temos de ser ágeis e não perder o foco do cliente. Não vejo isso como um perigo para o grupo Carrefour. O mercado brasileiro, ao contrário, precisa se consolidar. Temos mil cadeias de supermercado no Brasil. Os países mais maduros têm cinco cadeias de supermercados. Alguns seis.

"O mercado brasileiro, ao contrário, precisa se consolidar. Temos mil cadeias de supermercado no Brasil"

Mas esses mil supermercados são todos bem pequenos. Nenhum deles é do porte de um Carrefour ou de Grupo Pão de Açúcar.
Realmente. Mas considero que o Carrefour precisa ter uma visão local. Não me interessa mais o grande “Carrefour”. A vida é local e perto do cliente. Veja o Walmart. Ele era o líder mundial e não foi capaz de adaptação do Brasil. O tamanho é interessante, mas não é mais suficiente. Você tem de ter humildade.

Você também disse que a concorrência obriga o Carrefour a inovar mais. E uma das tendências do setor é o supermercado sem caixa. O Carrefour está se preparando para essa tecnologia?
Durante a pandemia, apostamos em lojas autônomas e lançamos duas delas em condomínios sob a bandeira do Carrefour Express. Até o fim de ano, vamos ter até 20 lojas autônomas. Mas são projetos-pilotos. Queremos aprender e ver que tipo de produtos temos de vender. No início do ano que vem, acredito que veremos mais o comportamento do cliente para adaptar o nosso modelo.

Como funcionam essas lojas?
O cliente tem um aplicativo, entra na loja e escaneia o produto. É tudo sem caixa, mas está dentro de um condomínio, onde o cliente mora e é mais fácil de lidar com a questão de segurança.

Você também comentou sobre o Walmart, que é o maior varejista do mundo, que não se deu bem no Brasil. Tanto que vendeu a operação para a Advent, que a rebatizou de Big e agora está vendendo para vocês. Como o Big vai se encaixar na estratégia do Carrefour?
A nossa ideia é de reforçar duas regiões muito importantes, a Sul e o Nordeste, onde o Carrefour não tem uma presença forte. A Advent fez um trabalho importante de turnaround. E, em pouco tempo, eles ganharam dinheiro. Isso era para nós uma boa oportunidade. A primeira fase, quando você tem de fazer o turnaround, é a mais difícil. Uma vez que a empresa já ganha dinheiro, é muito mais fácil. Além disso, tem a área de supermercado, porque o Carrefour não tem tantos supermercados, e tem também o Sam's Club, que é uma pepita. É um novo modelo. É um clube e, dentre as tendências que vivemos, há mais e mais clubes. É outra forma de vender. E vamos aprender muito.

Qual a expectativa do Carrefour para a aprovação do negócio com o Big?
O Cade tem até junho do ano que vem.

Vocês já tomaram alguma decisão? Vão manter as marcas do Big?
Muitas informações não podemos compartilhar entre o Carrefour e o Big até a aprovação do negócio. Mas tudo o que não impacta a decisão estratégica e comercial, você tem autorização para antecipar. Sobre as marcas, vamos aprender e queremos compreender um pouco mais sobre o modelo do Maxxi (que concorre com o Atacadão). Mas quem sabe não podemos ter outras marcas? No Nordeste, o Big tem marcas fortes, como o Bompreço. É uma interrogação ainda. Precisamos tomar a decisão se vale a pena manter a marca e colocar, por exemplo, Carrefour Bompreço para ligar o cliente com sua região e suas marcas.

Em 19 de novembro do ano passado, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. Que lições o Carrefour aprendeu deste episódio de racismo?
Realmente aprendemos muito. Primeiro, foi uma tragédia. E foi um choque brutal para nós. Nunca deveria acontecer esse tipo de tragédia. Mas, infelizmente, foi assim. E, rapidamente, a partir de um compromisso com a família, oferecemos suporte psicológico e monetário. Criamos também um comitê para ajudarmos a entender melhor a situação das famílias negras no Brasil. E, com o comitê, tomamos algumas decisões. A primeira é que agora vamos internalizar toda a segurança em outro modelo. É menos segurança e mais para ajudar o cliente. Não podemos ter conflitos com os clientes. Contratamos 600 novos agentes para garantir que os nossos clientes encontrem um ambiente seguro e acolhedor. Investimos dinheiro para apoio tecnológico e quero que tudo seja transparente. Um segurança não pode falar com um cliente sem uma câmera. Tomamos ações para mudar completamente a visão de segurança. Temos a cada 15 dias reunião sobre esse tema.

"E fomos claro que não vamos aceitar o racismo. É muito importante ter tolerância zero com os fornecedores e com os clientes"

O que mais foi feito?
Temos também de ter um papel fora do Carrefour. Não podemos aceitar mais a situação das famílias negras. Neste ano, realizamos um fórum, com mais de sete mil fornecedores, onde apresentamos o nosso compromisso na nossa luta antirracista. E fomos claro que não vamos aceitar o racismo. É muito importante ter tolerância zero com os fornecedores e com os clientes.

Uma crítica que se faz às empresas, e não apenas apenas ao Carrefour, é que não há diversidade nos boards e nas diretoras. São poucas mulheres e negros nesses postos chaves. Isso foi endereçado por vocês?
Isso faz parte das próximas decisões. E faz parte do compromisso que temos em nível internacional já. Queremos ter uma visão mais do Brasil. Vamos mudar nossa forma de trabalhar. No início do ano que vem, devemos modificar um pouco a composição para aceitar mais pessoas. Atualmente, 63,9% dos colaboradores e 54,19% da liderança se autodeclaram pretos ou pardos, além de 31% de nossos diretores.

As ações do Carrefour Brasil caíram 5,3% desde 19 de novembro. No ano, sobem 2,8%. No mercado financeiro pelo menos, o Carrefour foi pouco impactado pelo episódio de racismo. Esse é um sinal de que os investidores falam muito sobre ESG, mas na prática ignoram o tema?
O impacto foi de alguns meses, é verdade. Mas também era importante tomar decisões. Aceitamos responsabilidades e anunciamos ações concretas. Falamos com muitos investidores para explicar o que aconteceu e as nossas promessas para demonstrar que estávamos liderando uma mudança global que era importante para nós e também para o Brasil. Temos muitas ações. E tudo faz isso faz parte do nosso compromisso. Vamos demonstrar rapidamente, antes do fim do ano, o resultado de nossas ações concretas. Isso vai ajudar as pessoas a verem uma nova cara do Carrefour.