Há quase cinco anos, um emaranhado de troncos e raízes de acácia, no número 48 da rua Daubigny, em Auvers-sur-Oise, é objeto de uma intensa batalha judicial. De um lado, está o casal Jean-François e Hélène Serlinger, proprietários do terreno. Do outro, a prefeitura da cidade, localizada a 30 quilômetros de Paris, no noroeste da Île-de-France.
No início de abril, confirmando decisão anterior do Tribunal Administrativo de Cergy, os juízes de apelação de Versailles bateram o martelo: aquele pedaço de encosta no jardim dos Serlinger “não constitui acessório da via pública”. Assim, Jean-François, de 68 anos, e Hélène, de 67, continuam donos da última inspiração de Vincent van Gogh.
Inacabada, a obra Raízes de árvore começou a ser pintada na manhã de domingo, 27 de julho de 1890, horas antes de o pintor holandês atirar contra o próprio peito, em um campo de trigo, próximo dali — ele morreria dois dias depois, aos 37 anos.
No Facebook, a prefeita Isabelle Mézières esbravejou, prometendo recorrer à Justiça mais uma vez: “As raízes pertencem ao povo de Auvers! Essas raízes são um bem comum e não um objeto de comércio”.
Fundadores da Associação de Preservação das Raízes de Van Gogh, desde 2024, entre maio e setembro, o casal oferece visitas guiadas pela propriedade a Є 8, por pessoa.
A disputa por aquele pedaço de terra começou com a resolução de um mistério.
Até 2020, a tela, de cores vibrantes e formas aparentemente sem conexão com o mundo real, era interpretada pelos especialistas como o início da transição de Van Gogh para a arte abstrata.
Não era. Até o último instante de vida, o artista pintou o que via a seu redor; retratando paisagens, pessoas, objetos e a si próprio. O cenário de sua última tela fica a apenas 150 metros do Auberge Ravoux, seu endereço em Auvers.
Jean-François e Hélène compraram o terreno em 2013. Depois de criar três filhos, eles encontraram na vila o lugar ideal para viver a aposentadoria — o marido era professor de inglês e trabalhou no Ministério de Finanças; e a esposa, pintora nas horas vagas, foi executiva de uma grande empresa.
Perto de onde eles moram, no número 48 da rua Daubigny, uma pequena casa se anunciava perfeita para Hélène montar seu ateliê. E, desde 2014, todo início de junho, ela promove a exposição Art au jardin.
"Originalmente, não tínhamos a intenção de abrir nossa propriedade ao público", diz Jean-François ao NeoFeed.
O casal o fez por sugestão (e insistência) de pesquisadores, escritores e até mesmo dos descendentes de Theo van Gogh — o irmão de quem o pintor era muito próximo, em uma relação de profunda cumplicidade e apoio incondicional; apesar de conturbada, muitas vezes.
No trabalho de organização e manutenção do lugar, como espaço de visitação, o casal contou com as orientações técnicas do Museu Van Gogh, de Amsterdam, e da Fundação Van Gogh Europa, aliança internacional entre cerca de 30 organizações na Holanda, Bélgica, Reino Unido e França, pela preservação e promoção do patrimônio do artista.
"Nós não somos apenas os donos do terreno: somos os seus guardiões — os guardiões de uma memória, de um caminho que atravessa uma pintura; um caminho que se pode tocar, que simbolicamente leva até o trigal onde Van Gogh atentou contra a própria vida", reforça Jean-François. "É isso que nos move, mais do que qualquer outra coisa: o encontro humano e artístico, que vai além do simples enquadramento de um local turístico."
Ao que Hélène, completa ao NeoFeed: "Percorrer a propriedade é como atravessar o espelho de Alice para o 'País da Maravilhas', só que atravessamos o espelho para o mundo de Van Gogh".
"Um sonho acordado"
A descoberta de que as raízes dos Serlinger eram as raízes de Van Gogh só foi possível graças ao pesquisador e consultor Wouter van der Veen, um dos especialistas na obra do holandês mais proeminentes da atualidade.
Durante o confinamento imposto pelo coronavírus, ele estava fazendo arrumações em casa, quando encontrou alguns cartões postais da primeira década do século 20, cedidos por uma antiga moradora de Auvers.
Um deles trazia a imagem de um homem empurrando uma bicicleta, ao lado de um pequeno barranco. Wouter digitalizou a fotografia, deu zoom no canto direito e teve a impressão de já conhecer aquelas plantas retorcidas. Aproximou mais um pouco, mais e mais... sim! Estava ali o motivo dos últimos traços de Van Gogh.
Quando a França afrouxou as regras do isolamento social, ele viajou imediatamente para Auvers. Aquelas eram, de fato, as raízes de Raízes de árvore. À notícia do achado de Wouter, um funcionário do museu de Pontoise, ali do lado, recuperou uma foto de 1907, no mesmo lugar… e lá estavam as mesmas formas. Praticamente idênticas, na mesma posição.
“Na medida em que pode ser chamado de minha descoberta, ela só foi possível graças aos esforços de outros: eu não tirei a fotografia que levou à descoberta ou pintei a obra de arte cujo cenário foi revelado. Eu não sou o dono da terra onde a obra de arte foi pintada e, finalmente, enquanto outros arriscaram suas vidas durante o bloqueio da covid-19 para cuidar dos doentes ou para manter a economia funcionando, eu tive tempo para examinar cuidadosamente um documento histórico”, escreve o pesquisador no livro Attacked at the very root. “Encontrar o lugar onde Van Gogh pintou sua última e mais misteriosa obra é um sonho acordado que ainda estou tentando compreender.”
"Eu me feri"
Auvers é conhecida como a cidade dos artistas, sobretudo dos impressionistas. Atraídos por sua paisagem rural, Paul Cézanne, Charles-François Daubigny, Camille Corot e Camille Pissarro tinham o costume de passar longas temporadas no lugar.
A Van Gogh, a região oferecia a paz e a tranquilidade de que ele precisava depois de um ano internado em um hospital psiquiátrico em Saint-Remy-de-Provence.
Lá, ele estaria perto de Theo, que vivia em Paris com a mulher e o filho pequeno. E poderia contar ainda com os cuidados do doutor Paul-Ferdinand Gachet, morador da cidade e médico famoso entre os artistas da época — ele próprio um pintor amador.
O holandês chegou a Auvers em 20 de maio de 1890 e rapidamente fez amizade com Gachet. “Ele [o médico] me diz que, em meu caso, o trabalho é a melhor coisa para manter meu equilíbrio”, escreveu Van Gogh a Theo.
E foi o que o artista fez. Nos cerca de 70 dias em que viveu no Auberge Ravoux, a 3,5 francos a diária, ele pintou 77 quadros, além de esboços e desenhos.
“Sabendo claramente o que eu queria, pintei outras três grandes telas desde então. São imensas extensões de campos de trigo sob céus turbulentos, e fiz questão de tentar expressar tristeza, extrema solidão. Você verá isso em breve, espero — pois espero trazê-las a você em Paris o mais rápido possível, pois quase acredito que essas telas lhe dirão o que não posso dizer em palavras, o que considero saudável e fortificante sobre o campo”, contou o artista ao irmão, em carta de 10 de julho.
Mas não importava o quão “saudável e fortificante” fosse a vida rural, Van Gogh seguia atormentado. A doença não lhe dava trégua. Em 27 de julho, ele voltou de sua sessão matinal de pintura para almoçar na estalagem.
“Ao terminar, pôs a sacola de tintas e pincéis a tiracolo, equilibrou o cavalete nas costas e voltou ao trabalho, como vinha fazendo quase diariamente nas últimas semanas”, lê-se no magistral Van Gogh, a biografia do pintor escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith.
Não se teria mais notícias suas até, “já tendo o sol se posto”, ele voltar cambaleando ao albergue, “sem sacola, sem tela e sem cavalete”.
Sem dizer nada, subiu ao quarto. Preocupado, Gustave Ravoux foi ao encontro do hóspede.
Encontrou-o encolhido na cama: “Eu me feri”, disse o artista. Morreu dois dias depois e foi enterrado no cemitério da cidade.
Hoje, Auvers é repleta de placas com imagens das obras de Van Gogh em frente aos cenários que as motivaram.
Estão lá a sede da prefeitura, a casa de Gachet, o Auberge Ravoux, a igreja, a escadaria atrás da estalagem... e as raízes, ainda vivas, no número 48 da rua Daubigny.