Em um contexto de ações em baixa e valuations amassados, as empresas brasileiras de capital aberto têm adotado cláusulas de poison pill para evitar aquisições hostis. Mas esse mecanismo tem gerado mais disputas do que proteção efetiva aos minoritários.
O caso mais recente é o do Enjoei. Embora a empresa esteja com caixa líquido, consistente alocação de capital e não ter feito nenhum M&A, os acionistas aprovaram na semana passada a barreira para preservar a pulverização do capital e evitar uma tomada de controle.
A mudança no estatuto foi na regra da poison pill. O texto original já previa a realização de uma oferta pública de aquisição (OPA) caso um investidor superasse 15% de participação na empresa, mas o prêmio a ser pago foi significativamente ampliado.
Na nova versão do estatuto aprovada em Assembleia Geral Extraordinária (AGE), o prêmio passa a ser de 200% sobre o maior preço por ação pago pelo ofertante nos 24 meses anteriores ao atingimento da participação relevante. Pela regra anterior, o valor da OPA correspondia ao maior preço pago nos seis meses anteriores, sem a exigência do prêmio de 200%.
O NeoFeed conversou com pessoas próximas ao management da empresa que afirmaram ser natural fazer atualizações no estatuto de tempos em tempos, ainda mais nas condições atuais de cenário e oportunidades. Essa atualização ocorre em um momento em que, após anos de desvalorização, empresas menores da bolsa se tornaram alvos potenciais de compradores.
Um exemplo recente foi a Kora Saúde, que saiu da bolsa no mês passado após uma OPA feita pelo fundo H.I.G. Capital a R$ 8,80 por ação — valor 89,4% abaixo do pico de 2021. No caso do Enjoei, os papéis são negociados a R$ 1,16, com queda de 52,85% em 12 meses e representando apenas uma fração da precificação de R$ 10,25 do IPO, em 2020.
"Não é ruim uma empresa de capital aberto ter uma alternativa de saída. Não se pode demonizar a OPA ou a poison pill, que são regras de administração utilizadas para determinar um modelo necessário”, diz Mauro Cunha, conselheiro independente e consultor da Engage MC.
“A poison pill também não pode servir para o encastelamento da administração, com preços absurdos que impedem que a OPA aconteça, algo que pode ser benéfico para todos, exceto para a administração que vai ser demitida”, complementa.
Em um mercado com preços mais propícios à compra do que à venda, as OPAs tomaram o lugar dos IPOs, ausentes desde 2021. Desde então, foram registradas 43 OPAs na B3, a mais recente envolvendo a compra da Eletromídia pela Globo.
Embora seja uma ferramenta para proteger a dispersão acionária, a poison pill tem eficácia jurídica questionável. Ao contrário das OPAs por aquisição de controle ou aumento de participação — previstas na Lei das S.A. e na Resolução 85 da CVM —, a poison pill é uma cláusula estatutária, de natureza contratual.
“Ela não está na lei nem na regulamentação da CVM. Tudo depende de como está redigida no estatuto — e, muitas vezes, acaba em briga”, diz o advogado Alfredo Lazzareschi, especialista em disputas societárias e presidente da Associação Brasileira de Investimento, Crédito e Consumo (ABRAICC).
O próprio mecanismo, segundo ele, costuma ser evitado por investidores que não querem arcar com os custos de uma OPA. “Muitos ficam em 14,9%, só para não disparar o gatilho”, diz Lazzareschi.
O caso mais emblemático foi o do GetNinjas com a Reag Investimentos. Em 11 de outubro de 2023, a gestora ultrapassou 25% do capital social da empresa e publicou a OPA nos acréscimos do prazo legal. A tomada de controle aconteceu após um descontentamento dos minoritários com a proposta de distribuição de R$ 223 milhões dos R$ 270 milhões que a empresa tinha em caixa.
Após concluir a OPA, a Reag incorporou o GetNinjas e fez o chamado IPO reverso, ou seja, usou a “casca” da empresa de gestão de serviços para se lançar na bolsa de valores.
"O mercado brasileiro precisa amadurecer. Em momentos de abertura de janela, bancos de investimento, que deveriam ser os gatekeepers, empurram empresas não preparadas para abrir o capital", afirma Cunha. "Uma subsidiária de uma multinacional abrir o capital no Brasil, por exemplo, é conflituoso."
Em 25 de abril, o Carrefour conseguiu "virar o jogo" com os acionistas presentes na assembleia da companhia no País e aprovar a OPA para converter a empresa brasileira em subsidiária integral da matriz francesa.
Brechas e longas disputas
Dependendo da redação da cláusula, as brechas podem abrir caminho para longas disputas jurídicas. É o que ocorre com a Oncoclínicas, um dos maiores centros de oncologia da América Latina, hoje envolvida em uma disputa entre o fundo brasileiro Latache e um grupo de investidores americanos formado pelo Goldman Sachs e o fundo Centaurus.
O estatuto da Oncoclínicas prevê uma OPA com prêmio de 120% sobre a maior cotação registrada nos 12 meses anteriores. Assim como no Enjoei, o gatilho é a posse de 15% do capital. Em novembro, o Centaurus ultrapassou esse limite e, em março deste ano, tornou-se o maior acionista da companhia, com 31,83% de participação.
A disputa gira em torno de uma cláusula de exceção que isenta da OPA investidores que já detinham participação relevante antes do IPO. O Goldman Sachs, sócio de longa data, alega que o Centaurus já integrava indiretamente o captable via um veículo de investimento do banco. Já os minoritários argumentam que se trata de um novo acionista, o que exigiria a realização da oferta.
Disputas desse tipo podem se arrastar por anos. Em alguns casos, o investidor ultrapassa o limite e exerce influência sobre a companhia antes mesmo de um veredito. Segundo Mikael Martins, sócio do Guedes Nunes Advogados, foi o que aconteceu na incorporadora Rossi. Ele representa a família fundadora, que alega que o investidor Silvio Tini, por meio de diferentes instrumentos, superou o teto de 25% previsto no estatuto. Ali, também havia uma exceção.
Pelo estatuto da Rossi, a poison pill não se aplica se a aquisição for feita por um novo acionista de referência, em caso de perda do poder de controle. Martins, no entanto, sustenta que essa exceção não deveria valer, pois a companhia já tinha controle pulverizado. Sem uma resolução, Tini conquistou maioria no conselho e promoveu a troca de diretoria no ano passado, enfraquecendo o papel dos fundadores.
“A única proteção que sobra enquanto o regulador ou árbitros não decidem é a suspensão dos direitos políticos”, diz Martins. A suspensão está prevista no estatuto, mas precisou ser obtida judicialmente, após ser barrada pelo conselho ligado aos novos acionistas.
O processo segue parado na Câmara de Arbitragem da B3. “Entre o pedido de OPA e a oferta, podem se passar anos”, diz o advogado.
Embora o processo esteja em arbitragem, Martins acredita que a CVM também poderia atuar. Mas a estrutura limitada da autarquia compromete a agilidade. “Os funcionários da CVM são engajados, os diretores também, mas falta orçamento, falta estrutura. Isso impacta diretamente a velocidade das decisões.”
Poison pill no centro da disputa
Em outras situações, é a própria poison pill que se torna o centro da disputa. Foi o que aconteceu com a Toky, a empresa formada pela fusão de Mobly e Tok&Stok. Desde o ano passado, a família Dubrule vinha negociando com os controladores da Home24, donos da Mobly, a aquisição da participação deles na companhia, conforme troca de mensagens revelada pelo NeoFeed.
Os fundadores da Tok&Stok e os controladores da Home24 negociaram os termos para a retirada da poison pill da OPA de ações proposta pela família Dubrule, em um movimento que prejudica os acionistas minoritários.
No dia 30 de abril, os acionistas da Toky rejeitaram a proposta da controladora do grupo de retirar a poison pill e também não aceitaram acabar com os artigos do estatuto que exigem a OPA para compras acima de 20% das ações emitidas pela companhia. Isso significa que foi mantida a exigência de um prêmio de 20% sobre o maior preço da ação nos 180 dias anteriores à oferta de aquisição.
Um dos raros casos em que a CVM agiu de forma mais firme foi o da Ambipar. Em março deste ano, a autarquia determinou que a gestora Trustee realizasse uma OPA por aumento de participação.
A decisão veio após a identificação de que, entre julho e agosto de 2024, a Trustee teria atuado em conjunto com o controlador da companhia na compra de ações, ultrapassando o limite de um terço previsto na Resolução 85.
A CVM fixou inicialmente o prazo de 21 de abril para o pedido de registro da OPA, depois prorrogado para 7 de maio. No entanto, no dia limite, suspendeu o prazo até decisão final sobre os recursos. Assim como outros casos, a OPA da Ambipar segue indefinida — enquanto os custos judiciais corroem o potencial prêmio da operação.