Muito antes de ser um reality show, o Big Brother era um mecanismo de controle descrito no livro "1984", do escritor e jornalista inglês George Orwell. Agora, a fantasia parece ganhar contornos de realidade no Vale do Silício, onde uma das empresas mais misteriosas da região, a Palantir, começa a se envolver em algumas situações, no mínimo, suspeitas.

A Palantir foi fundada, em 2003, por Alexander Karp, Garry Tan, Joe Lonsdale, Nathan Gettings, Stephen Cohen e Peter Thiel. O mais ilustre deles é Thiel, um investidor renomado, cofundador do meio de pagamento PayPal e membro do conselho do Facebook. Ele é ainda um dos poucos empresários do Vale do Silício a apoiar o republicano Donald Trump.

A empresa de Thiel desenvolve softwares capazes de analisar e integrar dados a fim de responder velhas e novas questões. Desde sua origem, a Palantir recebeu mais de US$ 2 bilhões de fundos de investimentos em 22 rodadas de captação. Seu nome foi extraído do livro "O Senhor dos Anéis", do autor inglês J. R. R. Tolkien, que descrevia uma Palantir como uma espécie de bola de cristal, permitindo que seu detentor enxergasse o que se passava em lugares remotos.

A Palantir começou suas atividades desenvolvendo ferramentas para impedir transações fraudulentas feitas com cartões de crédito. "Mas logo perceberam que esse mesmo método de análise de padrões poderia ser usado para vigiar outros tipos de atividades criminosas, incluindo ações terroristas e tráfico de drogas", explicou ao NeoFeed o especialista Bernard Marr, autor de best-sellers relacionados a tecnologia, entre eles a obra Data Strategy.

Isso fez com que o próprio governo americano se tornasse um dos principais clientes da Palantir, que presta serviço ao Exército local, à CIA e até ao Pentágono. Nos documentos vazados por Edward Snowden, em 2013, a Palantir também foi mencionada: a empresa teria colaborado para a expansão da vigilância e espionagem global, feitas pela NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA.

Um dos contratos mais polêmicos e longevo da Palantir é o firmado em 2014 com o Immigration and Custom Department (ICE), departamento do governo americano responsável pelo controle migratório nos EUA. Estima-se a que a autarquia pague entre US$ 41 milhões e US$ 51 milhões à empresa de Thiel. O acordo garante ao governo acesso à base de dados e aos softwares de gerenciamento da companhia californiana.

O ICE estaria utilizando a plataforma para planejar o que pode ser a maior operação de fiscalização contra famílias ilegais em território americano

Recentemente, porém, críticos e ativistas têm contestado a forma e o nível de detalhes que a Palantir fornece sobre as pessoas e a forma como isso tem sido usado pelas autoridades. O ICE estaria utilizando a plataforma para planejar o que pode ser a maior operação de fiscalização contra famílias ilegais em território americano. Ativistas apontam que o grau de invasão proposto pelo ICE seria impossível sem essa tecnologia.

Apesar das críticas, a verdade é que pouca gente sabe realmente como o software funciona e qual o modelo de negócio da Palantir. Procurada pelo NeoFeed, a empresa informou que não teria tempo hábil de responder as questões.

As suspeitas quanto ao trabalho da empresa, porém, levaram a um pedido público para que a companhia liberasse informações sobre o Palantir Gotham, um de seus serviços mais populares, e utilizado pela Northern California Regional Intelligence Center (NCRIC).

Atendendo mais de 300 comunidades no norte da Califórnia, o NCRIC é conhecido como centro de inteligência do Departamento de Segurança Interna, agregando em grandes bancos de dados informações de órgãos estaduais, locais e federais, além de algumas entidades privadas. Tudo isso permite que, mesmo com pouca informação sobre uma pessoa, as autoridades levantem dados bastante íntimos sobre suas vidas.

Uma reportagem da VICE mostrou que, apenas com o nome completo de um cidadão, a polícia pode rapidamente descobrir e-mail, números de telefone, endereços atuais e anteriores, contas bancárias, número de previdência social, relações comerciais, relações familiares e informações bastante específicas, como altura, peso e cor dos olhos – contanto que essas informações estejam em um dos bancos de dados.

Ao associar o nome com a placa de um carro registrado, é possível ainda saber com precisão os lugares e a hora por onde a pessoa passou. Por fim, ao mapear os familiares e possíveis sócios de um suspeito, as autoridades conseguiriam também informações sobre essas pessoas.

"O software da Palantir se tornou uma das armas mais efetivas na chamada 'guerra digital contra o terror”, afirma Marr

Todos esses dados são, então, agregados e sintetizados de uma forma que dá aos policiais quase onisciência sobre qualquer suspeito que ele decida pesquisar. "O software da Palantir se tornou uma das armas mais efetivas na chamada 'guerra digital contra o terror”, afirma Marr. “Os fuzileiros navais, por exemplo, usaram as ferramentas da empresa para analisar as estradas no Afeganistão, a fim de prever ataques e a disposição de bombas."

Embora o uso dessa tecnologia seja útil, alguns analistas acreditam que se não for usada seguindo parâmetros claros, ela pode abrir a caixa de Pandora para uma série de abusos.

O caso do ICE, por exemplo, ganhou tanta repercussão que diversos profissionais da área "invadiram" o Github, uma plataforma para desenvolvedores, e publicaram relatórios mostrando o abuso dos serviços da Palantir na questão da imigração americana. A ação foi coordenada de uma maneira a disseminar a notícia, na esperança de que a própria empresa repense seus valores.

"Se a Palantir vai obter lucros a partir do trabalho da comunidade código aberto, então nós, como uma comunidade, devemos opinar com quem eles trabalham também", escreveu um dos ativistas envolvidos nos protestos online contra a empresa californiana.

As polêmicas, porém, parecem não ter afetado o bolso da companhia, que ao que tudo indica deve abrir seu capital em 2020. De acordo com a Bloomberg, a empresa conseguiu aumentar sua receita em 40%, encostando na casa do US$ 1 bilhão no ano passado.

Em 2015, investidores privados avaliaram a empresa em US$ 20 bilhões. O banco de investimento do Morgan Stanley, que deve liderar a abertura da capital da Palantir, acha que ela pode valer o dobro: US$ 41 bilhões.

Mais do que entender o quanto vale a empresa, a principal questão agora é saber como a Palantir vai revelar seus serviços e outras informações sem colocar em risco a natureza de seu modelo de negócio. Talvez, pela primeira vez, não são apenas investidores os interessados em ter algumas dessas respostas.

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