O agronegócio brasileiro tem vários nomes com peso global. JBS, Marfrig, BRF, Raízen, Amaggi, Bom Futuro são grupos reconhecidos como potências agroindustriais com influências decisivas em seus mercados. Antes delas, porém, teve a Cutrale.

Pode-se dizer, sem medo de estar exagerando, que foi José Luís Cutrale, que morreu nesta quarta-feira em Londres, aos 75 anos, quem deu o exemplo da ousadia.

Nas últimas três décadas, ele transformou o negócio de sucos de laranja construído pelo pai, José Cutrale, no final dos anos 1960, em um império diversificado com operações em mais de 90 países, capaz de desafiar gigantes como nunca outra empresa brasileira havia feito.

Discreto, com fama de recluso, José Luís movia-se com delicadeza, apesar do corpanzil de cerca de 1,90 metro e das dimensões nada modestas de seus negócios. Falava de forma pausada, escolhendo as palavras, e ouvia com atenção. Quase sempre que começava uma conversa, sabia aonde queria chegar. E chegava lá.

A conquista do mercado americano, no final dos anos 1990, foi a primeira demonstração da ambição do neto do vendedor de frutas no Mercado da Cantareira que se tornou “Rei da Laranja”, dono de 40% do mercado global da fruta.

Brasil e Estados Unidos disputavam, então, uma ferrenha concorrência no setor de sucos, que levou o governo americano a impor severas taxas alfandegárias ao produto importado.

Cutrale, dono de uma fortuna de US$ 1,9 bilhão segundo a revista americana Forbes, não se intimidou e criou uma estratégia de combate em território inimigo.

Bem relacionado e negociador astuto, aproximou-se da Coca-Cola, dona da marca de sucos Minute Maid, e adquiriu, em 1996, a fábrica da marca em Auburndale.

Quatro anos depois, comprou uma fazenda de 6 mil hectares na Flórida para iniciar o plantio de seus próprios pomares. Foi o primeiro de muitos passos em direção à conquista global e da diversificação de negócios.

Sua ligação com a Coca-Cola evoluiu para outras frentes, como o mercado de refrigerantes – hoje a família é uma das maiores acionistas individuais e tem assento no board da companhia americana.

A família Cutrale é uma das maiores acionistas individuais e tem assento no board da Coca-Cola

Novas aquisições e o desejo de controlar todos os processos das cadeias de produção em que estão envolvidos o levou a adquirir navios, portos (possui terminais no Brasil, Estados Unidos, Europa e Ásia) e ampliar suas fronteiras para além da laranja.

No início da década passada, ao perceber que a concorrência de novas categorias de bebidas – como energéticos – começavam a roubar consumidores do suco de laranja, passou a mirar oportunidades em outras áreas em que houvesse sinergia com a estrutura que já havia construído.

Foi então que realizou uma das suas mais arrojadas transações, a aquisição da americana Chiquita Brands, centenária produtora e processadora de bananas e alimentos in natura que hoje faturou US$ 3 bilhões no ano passado. O takeover hostil da companhia, em 2014, exigiu de Cutrale o uso de todas as habilidades e sua grande influência internacional.

As negociações duraram mais de seis meses, em que o empresário e seus dois filhos – José Henrique e Júnior – costuraram uma complexa teia de apoios para convencer mais de 800 acionistas do grupo a trocarem uma venda quase fechada para o grupo irlandês Fyffes – que criaria a maior empresa de bananas do mundo – pela sua proposta.

A primeira oferta, de US$ 13 por ação, foi rejeitada após um relatório contrário do Conselho de Administração da Chiquita. Cutrale manteve o foco e trouxe para o seu lado outro lendário bilionário brasileiro, José Safra.

Ele também trabalhou também nos bastidores da política americana para demonstrar que não era um predador, mas alguém que trabalharia pelo crescimento da marca. Arrematou a Chiquita por US$ 1,3 bilhão – o equivalente a US$ 15 por ação.

Pelo menos um executivo que participou da negociação afirma que o número já estava na mente de Cutrale desde o início. “Quando eles entram em uma negociação como essa, sabem onde querem chegar, o quanto querem pagar e não desistem tão facilmente”, afirmou o executivo na época.

De Araraquara à Casa Branca

Com a Chiquita, mais que bananas, Cutrale adquiriu um portifólio de negócios que incluem saladas frescas, condimentos e snacks. Hoje, o grupo nascido em Araraquara, no interior de São Paulo, também atua nos setores imobiliário, financeiro e da saúde.

Nenhuma aquisição é feita aleatoriamente. Cutrale e os filhos sempre foram minuciosos no planejamento de cada novo passo e seguem à risca o que planejavam. E agiam com rara sintonia. “O que um dizia, os outros assinavam embaixo”, diz ao NeoFeed outro executivo que trabalhou no grupo.

“Pessoa de poucas palavras e grandes compromissos, de fácil trato, brilhante nos negócios, lutador incansável, nosso Pai pautou sua vida pela gentileza e respeito ao próximo, trabalho árduo, honestidade, humildade e discrição, valores esses que nos transmitiu, para que junto com seus seis netos perpetuemos o seu legado familiar e empresarial”, escreveram os três filhos – além de Júnior e José Henrique, ele tinha também a filha Graziela – na nota de falecimento divulgada na quarta-feira à tarde.

Os interlocutores confirmam o estilo franco e direto. “Muitos diziam que ele falava de negócios complexos com uma simplicidade que parecia que tudo se resumia a comprar e vender”, afirma um amigo empresário em conversa com o NeoFeed.

“Ele era um homem de trato simples, mas de uma firmeza intimidadora”, diz um ex-funcionário. Nenhum dos entrevistados autorizou a divulgação de seu nome, em respeito ao estilo reservado de José Luís Cutrale.

Júnior e José Henrique vinham assumindo cada vez mais responsabilidades no grupo, mas José Luís esteve presente e atuante até bem recentemente, quando surgiram rumores de que sua saúde estava debilitada.

Mesmo distantes fisicamente – o pai vivia em Londres desde 2006, para onde se mudou por preocupações com segurança e os filhos se alternavam entre Brasil e Estados Unidos – eram próximos nos conceitos e objetivos.

Era assíduo convidado do jantar anual para os principais empresários americanos na Casa Branca – independente de quem fosse o presidente

A vida no exterior também não desconectou Cutrale dos centros de poder no Brasil. Ele mantinha interlocução permanente com empresários e políticos do primeiro escalão e estava sempre atualizado sobre o que acontecia nos bastidores de Brasília.

Cutrale evitava entrevistas e aparições públicas, mas costumava desfilar seu prestígio nos salões internacionais. Era assíduo convidado do jantar anual para os principais empresários americanos na Casa Branca – independente de quem fosse o presidente.

Outro compromisso que não deixava de frequentar era o Juice Summit, concorrido evento anual da indústria de sucos na cidade de Antuérpia, na Bélgica. Ali, a chegada de Cutrale costumava ser um acontecimento.

Ele tinha dificuldade em caminhar pelos corredores, tamanho era o assédio de todos os presentes. Cutrale não se abalava. Dava atenção a todos, conversava e se permitia até algumas raras declarações públicas.

Ali era possível ter o exato tamanho do homem e sua obra. “Era reverenciado como um Pelé do suco”, diz um executivo que o acompanhou em vários desses eventos. A primeira estrela global do agro brasileiro.