Criado em 2004 como o braço financeiro do Mercado Livre, o Mercado Pago ultrapassou, com o tempo, as fronteiras dos cliques, sellers e carrinhos de compra do grupo, dono da maior plataforma de comércio eletrônico da América Latina e de um valor de mercado de US$ 80,8 bilhões.

Ao ganhar vida própria, a divisão, volta e meia, é apontada como a joia da coroa da companhia. E um componente, em particular, salta aos olhos nessa equação: a operação brasileira da fintech. É o que mostram dados do Mercado Pago, revelados pela primeira vez, com exclusividade, ao NeoFeed.

Com uma cifra de US$ 837 milhões, o Mercado Pago Brasil respondeu por 21,1% da receita líquida de US$ 3,9 bilhões do Mercado Livre em 2020. Ou seja, as operações locais da fintech já representam um quinto da receita total do grupo, considerando todas as unidades de negócio e países na América Latina.

No contexto do Mercado Pago, que apurou uma receita de US$ 1,41 bilhão no período, a fatia do Brasil foi de 59,1%. Já a participação da divisão na receita total do grupo foi de 35,5%. Levando-se em conta a operação em toda a América Latina, a fintech registrou um volume transacionado (TPV) de US$ 49,7 bilhões em 2020.

O peso do Mercado Pago Brasil se estende aos negócios do Mercado Livre no País. A fintech representou 38,1% da receita líquida total de US$ 2,1 bilhões da subsidiária brasileira no ano passado.

“Nós sempre enxergamos no Mercado Pago um potencial muito maior do que o próprio marketplace”, diz Tulio Oliveira, vice-presidente e country manager do Mercado Pago no Brasil, ao NeoFeed. “E já não somos mais relevantes apenas no contexto do grupo, mas no mercado como um todo.”

Outros números dão um termômetro do negócio no País. Em sua oferta mais conhecida, de pagamentos, são 10 milhões vendedores ativos, com 60% do volume processado fora do Mercado Livre. Já em pessoas físicas, são mais de 20 milhões de usuários ativos da conta digital Mercado Pago.

“Muitos players vêm focando um ou outro lado dessa cadeia e nós já temos esses dois elos muito bem desenvolvidos, e um marketplace para integrar esses mundos”, diz Oliveira. “Estamos nos inserindo cada vez mais no dia a dia das pessoas e temos um roadmap enorme de produtos no radar.”

A próxima peça desse quebra-cabeças no País acaba de sair do forno. Trata-se da oferta de portabilidade de salário para a conta digital do Mercado Pago. O serviço começou a ser testado nos últimos meses, primeiro, com uma base restrita de funcionários.

“Vamos abrir isso gradativamente, mas já temos mais de 1 milhão de clientes da nossa base com a possibilidade de usar esse recurso”, conta Oliveira. “E, em pouco tempo, estaremos em mar aberto.”

Para atrair os usuários, a fintech criou um pacote com benefícios como anuidade grátis no cartão de crédito e acesso imediato ao nível mais alto do Mercado Pontos, programa de fidelidade do Mercado Livre com descontos em fretes, compras e na contratação de serviços como Disney+ e Deezer.

“A portabilidade é mais uma forma de impulsionar o cash in recorrente na conta, o que é um desafio para todas as fintechs e bancos digitais”, diz Fabricio Winter, sócio da consultoria Boanerges & Cia. Ele entende que a iniciativa abre caminho para outros produtos.

Em 2020, a fintech representou 38,1% da receita líquida total de US$ 2,1 bilhões do Mercado Livre no Brasil

“Vai ser possível acompanhar e conhecer melhor o comportamento desse usuário e o quanto ele compromete da sua renda”, afirma. “E, em cima disso, ter dados mais apurados para aprimorar a oferta de crédito.”

O Mercado Pago encerrou 2020 com uma carteira de crédito de R$ 1,3 bilhão. Para pessoas físicas, há opções como o parcelamento de contas, a partir de R$ 15. Já para os vendedores, alternativas como empréstimos de R$ 100 a R$ 500 mil, que podem ser parcelados em até 24 vezes.

A fintech não descarta novidades nesse portfólio. “Quando falamos de portabilidade de salário, a possibilidade do crédito consignado, por exemplo, começa a ficar muito mais próxima”, diz Oliveira.

Há outras soluções na fila de espera para ampliar o engajamento na plataforma. Em investimentos, estão em análise segmentos como previdência e produtos de renda fixa. Hoje, o usuário pode optar por uma conta com o saldo remunerado com 100% do CDI.

Outra área é a de seguros, na qual o Mercado Pago tem dois produtos: a garantia estendida nas compras de algumas categorias no Mercado Livre e o seguro contra roubos e danos de celulares. Seguros residenciais, automotivos e de vida são algumas das ofertas em avaliação.

Novos limites

A conta digital não é a única prioridade. Depois de ganhar escala em pagamentos com pequenos vendedores do Mercado Livre e de adicionar grandes marcas a esse cardápio, a fintech está mirando outro perfil de cliente.

“Existe um universo enorme de pagamentos, onde outros rivais jogam e não temos muita presença”, diz Oliveira. “Queremos atender o vendedor que já tem um ponto físico, uma pequena equipe e um faturamento mensal entre R$ 15 mil e R$ 20 mil.”

Um dos apelos para esse público é o acesso à plataforma do Mercado Livre. O Mercado Pago também criou ofertas como uma linha de crédito com parcelas variáveis, que são amortizadas de acordo com o volume mensal de vendas desse varejista, que tem um faturamento mais instável.

A integração entre os mundos offline e digital também está no centro da ampliação da rede de aceitação de pagamentos via QR Code. Hoje, são mais de 5 mil estabelecimentos cadastrados no País, com nomes como McDonald’s, Outback, Extrafarma e Petz.

O Mercado Pago está estimulando ainda a aceitação do PIX, o sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central, em pontos físicos. Depois de inaugurar essa estratégia, em janeiro, com o Burger King e a C&A, a fintech revelou ao NeoFeed a entrada de redes como Graal, Crocs e Fran’s Café nesse pacote.

Nas contas digitais, o sistema já responde por mais de 80% das transferências realizadas. Nesse espaço, as iniciativas mais recentes envolveram o lançamento da modalidade nas transações do Mercado Livre e a eliminação das taxas para os clientes que efetuem seus pagamentos via PIX, com QR Code.

O Mercado Pago Brasil respondeu por 59,1% da receita líquida total reportada pela fintech no ano passado

Ao estender seus fronts de atuação, o Mercado Pago ampliou, na mesma proporção, o número de empresas com as quais concorre. Mas é ainda em seu mercado tradicional que a fintech tem seus maiores rivais, dado que as ofertas financeiras são hoje uma das grandes zonas de confronto dos marketplaces.

Um desses oponentes é a B2W, com a Ame, que alcançou 17 milhões de downloads e uma rede de aceitação de 3 milhões de lojistas em 2020, além de reforçar seu portfólio com as aquisições da Bit Capital e da Parati.

Quem também não economizou foi o Magazine Luiza, cuja conta digital Magalu Pay, lançada no início de 2020, tem uma base atual de 2,7 milhões de contas. Em dezembro, a empresa comprou a Hub Fintech, por R$ 290 milhões.

O acordo em questão motivou um recurso do Mercado Livre junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica. O grupo alegava que era cliente da Hub Fintech e que a empresa detinha dados importantes de sua operação, que poderiam ser acessados pelo Magazine Luiza. Há duas semanas, o recurso foi negado pelo tribunal do Cade.

Já a Via, antiga Via Varejo, concentra suas apostas no banQi, com 1,8 milhão de contas abertas. Nesta semana, o grupo mostrou seu apetite ao anunciar a compra da Celer, fintech de pagamentos e de banking as a service.

“O Mercado Pago ainda está alguns passos à frente”, diz Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). “Mas se existe uma ameaça ela se chama Ame, que avançou muito nos últimos dois anos.”

Winter, da Boanerges & Cia, também faz uma ressalva. “O que deu destaque ao Mercado Pago até aqui não é garantia de sucesso”, diz. “Há um efeito manada e muitas ofertas nessa área estão se tornando commodities. Eles precisam ir além.”

Um relatório do BTG Pactual reforça o fato de que tanto o Mercado Pago quanto o Mercado Livre não podem ficar parados colhendo os louros por terem sido um dos pioneiros em seus respectivos segmentos.

Segundo o banco, em termos de visitantes únicos mensais, o Mercado Livre caiu de uma participação de 40%, em março de 2020, para 33% em março deste ano. No intervalo, o Magazine Luiza subiu de 15,6% para 18%. E, a Via, de 11,4% para 16,2%.

Adepto das maratonas, Oliveira não ignora o avanço dos rivais. Mas ressalta que o Mercado Pago está pronto para essa disputa. “É preciso tomar alguns cuidados para cruzar bem a linha de chegada” diz. “Essa corrida é de longo prazo e nossa ambição é ser a maior fintech da América Latina.”