Era sábado, 18 de novembro de 2023. Lance após lance, depois de uma acirrada disputa, o martelo soou na sede da Sotheby's, em Londres: um comprador, por telefone, arrematou um uísque por US$ 2,7 milhões. E, assim, o escocês Macallan Valerio Adami 60 anos foi alçado à garrafa de vinho ou destilado mais valiosa da história.

Envelhecido ao longo de seis décadas, apenas 40 unidades do The Macallan 1926 foram engarrafadas em 1986 — a safra mais antiga da marca, fundada em 1824, na vila de Craigellachie, nas Terras Altas da Escócia. Delas, somente 12 foram rotuladas pelo pintor italiano Valerio Adami, precursor da pop art.

Até o leilão de 2023, o recorde pertencia a uma garrafa do mesmo uísque, mas da coleção Fine & Rare, vendida também pela Sotheby’s, por US$ 1,9 milhão, quatro anos antes. Ela superou em quase US$ 1,3 milhão o Macallan M Decanter 2013, leiloado em 2014, em Hong Kong.

Quem não circula pelo universo dos sofisticados single malt, aqueles feitos com apenas um tipo de cevada maltada e provenientes de uma única destilaria, não entende como alguém pode desembolsar exorbitâncias por uma bebida que, na maioria das vezes, jamais será degustada.

Mas há uma explicação. Na realidade, duas — e ambas se retroalimentam. De um lado, cresce o número de colecionadores, em um movimento semelhante ao fascínio cada vez maior por memorabilia. E, de outro, aumenta o interesse pelo uísque como investimento. E de altíssimo rendimento. Pelo menos por enquanto.

De uma década para cá, a valorização da bebida alcançou 280%, informa o The Wealth Report 2024, o relatório de tendência do mercado dos high-net-worth-individuals — em bom português, os muito ricos.

A título de comparação, no mesmo período, as obras de arte registraram um incremento de 29%. E os carros e relógios de luxo, 25% e 18%, respectivamente.

"Houve um aumento nos três principais tipos de clientes: aqueles que compram o uísque como investimento, aqueles que compram para abrir a garrafa e aproveitar, e os colecionadores que compram porque esse é genuinamente seu hobby", diz Forrest Price, Whiskey Specialist da Sotheby’s ao NeoFeed. "Mas o investimento em uísque certamente está atraindo mais atenção."

Os mais valiosos

Dos dez uísques mais caros do mundo, já negociados em leilão, cinco são da The Macallan.

“O tempo de estrada nos permite ter diversos barris que ainda não foram abertos… alguns, com 80 anos de maturação”, diz Tiago Serrano, country manager da companhia, no Brasil, ao NeoFeed. “Com isso, conseguimos desenvolver edições especiais e limitadas que se valorizaram ao longo do tempo. ”

Cerca de 90% delas já saem pré-vendidas da destilaria, a preços que variam de US$ 90 a US$ 800. Como são poucas e a demanda é maior do que a oferta, há até lista de espera pelas garrafas mais exclusivas. Hoje, ela está em torno de seis meses.

Entre outras marcas que fazem brilhar os olhos dos investidores e colecionadores estão também as escocesas Royal Salute e Bowmore, a japonesa House of Suntory  e a americana Van Winkle (conheça as garrafas mais emblemáticas das marcas na galeria de imagens abaixo).

As "destilarias esquecidas"

Ainda que a maioria das destilarias, como a The Macallan, produza uísque para ser consumido, a avidez dos investidores vem transformando a indústria global da bebida, afirma ao NeoFeed Maurício Porto, especialista em uísque e sócio-fundador do bar e loja Caledonia Whisky.

“Quando um produto está em alta, mas não possui quantidade suficiente para atender o mercado, a destilaria aumenta o preço. Com o sucesso, ela vai repetir o movimento e isso se torna um negócio à parte", diz Porto.

Um sinal inequívoco do novo hype em torno do uísque como peça de coleção ou ativo alternativo é o renascimento das chamadas "destilarias esquecidas". Tratam-se de marcas abandonadas no passado, cujos produtos seguem preservados. A maioria delas pertence a grandes companhias, como a inglesa Diageo, que, percebendo o interesse crescente pelos uísques raros, as resgata do esquecimento.

Foi o que aconteceu com a Port Ellen. Fundada em 1825, na ilha de Islay, na Escócia, foi fechada em 1983 pela The Distillers Company, hoje pertencente à Diageo. De olho nos colecionadores e investidores, a destilaria reabriu no ano passado.

Se na década de 1980, o uísque produzido na ilha de Islay, na costa oeste da Escócia, custava £ 60 e estava longe de ser reconhecido como de alto padrão, hoje não sai por menos de £ 3 mil.

“Os consumidores começaram a ir atrás desses produtos, já que, além de uísque, eles contam uma história, o que valorizou ainda mais seu preço”, afirma Porto.

Recentemente, o Old Rip Van Winkle foi alçado ao posto de bourbon mais caro da história, ao ser vendido por US$ 125 mil, em um leilão da Sotheby's. A bebida foi criada pela mistura de barris que continham reservas de uísque de 15 e 20 anos, recuperadas na destilaria, que foi fundada em 1935 e teve sua operação encerrada em 1972. (Foto: Sotheby's)

Em parceria com a Aston Martin, fabricante inglesa de carros de luxo, a destilaria Bowmore apresentou há dois anos a "Série ARC". Recentemente, chegou ao mercado o segundo e último lançamento da coleção, o single malt ARC-54. O uísque de 54 anos vem eum decantador e custa cerca de US$ 80 mil (Foto: Bowmore)

“O tempo de estrada nos permite ter diversos barris que ainda não foram abertos… alguns, com 80 anos de maturação”, diz Tiago Serrano, country manager da The Macallan, no Brasil (Foto: The Macallan)

A avidez dos investidores pelos single malt mais exclusivos vem criando "um negócio à parte" no mercado global de uísque, como define Maurício Porto, especialista em uísque e sócio-fundador do Caledonia Whisky (Foto: Caledonia Whisky)

Pertencente hoje à Diageo, a escocesa Port Ellen é uma das "destilarias esquecidas" que foi recuperada na nova movimentação da indústria global de uísque (Foto: Port Ellen)

Famosas por seus "blends" de, no mínimo, 21 anos, em 1953, a Roya Salute lançou seu primeiro uísque em homenagem à coroação da rainha Elizabeth. Setenta anos depois, para comemorar a chegada do rei Charles III ao trono, a marca escocesa produziu a coleção "Royal Salute Coronation of King Charles III Edition", com apenas 500 unidades., a US$ 21,2 mil, a garrafa (Foto: Royal Salute)garrafas, a

Lançado em 2024, com apenas 400 garrafas, o Hibiki 40 anos é o uísque mais caro da destilaria japonesa House of Suntory. Preço: US$ 43 mil, aproximadamente (Foto: House of Suntory)

Em 2014, o Macallan M Decanter 2013 entrou para o "Livro dos Recordes" como o uísque mais caro do mundo, depois de alcançar US$ 628,2 mil, em um leilão, em Hong Kong (Foto: The Macallan)

Leiloada em 2019, por US$ 1,9 milhão, a garrafa da coleção "Fine & Rare", do uísque The Macallan 1926, é a segunda mais valiosa da história (Foto: Sotheby's)

Do ponto de vista do negócio, o especialista alerta: é preciso cuidado. Se uma marca vai com muita sede ao copo e começa, por exemplo, a lançar “edições especiais” todo mês, o propósito se perde. O investimento em uísque tem por princípio a escassez e, portanto, a exclusividade. É a lógica do mercado de luxo.

Os investidores de uísque não são necessariamente apreciadores da bebida, embora as duas características costumem andar juntas. Normalmente, diz Porto, o mais comum é o cliente comprar uma garrafa para ser degustada e outra para guardar, enquanto valoriza.

A Sotheby's, por exemplo, oferece um programa pelo qual o cliente pode comprar hoje um barril já envelhecido e deixá-lo descansar pelo tempo que quiser — "um investidor poderia ter seu próprio engarrafamento de 50 anos para vender em apenas algumas décadas, se estiver disposto a esperar", afirma Forrest Price.

Descobrir a hora certa de apresentar o uísque ao mercado requer estudo e, sobretudo, paciência. "Tudo relacionado ao uísque é inerentemente lento e aqueles que são pacientes têm sido recompensados ​​repetidamente", diz o executivo da Sotheby's.

"Chá de madeira"

No fundo, o uísque não passa de um "chá de madeira", explica Serrano, da The Macallan. O sabor da bebida é dado, claro, pelo tipo de cereal, mas também pela madeira usada no barril de armazenamento, o tempo de maturação e as condições da adega, como sua umidade.

Na destilaria de Craigellachie, por exemplo, os tonéis costumam ser feitos de carvalho europeu ou americano e usados, no máximo, duas vezes. “Quanto mais você utiliza um barril, mais fraco fica o sabor do uísque", diz ele.

Frequentemente, os barris também já serviram para maturar outras bebidas, o que também contribui para a diversificação dos sabores, aromas e texturas do uísque. O uísque mais caro do mundo foi envelhecido em barricas de jerez, mas há os que descansam em pipas de bourbon, chardonnay e pinot noir.

Crescimento brasileiro

Outro sinal da ascensão desse "chá de madeira" de luxo? O mercado global de single malt está previsto avançar em um ritmo mais acelerado do que o da bebida em geral: 6% contra 5% de taxa de crescimento anual composta até 2030. Avaliado em US$ 4 bilhões, em 2024, deve bater mais de US$ 5 bilhões, nos próximos cinco anos, avaliam os analistas da consultoria Grand View Research.

O Brasil vem acompanhando esse movimento. Se os rótulos mais sofisticados representavam cerca de 2% do consumo total de destilados, em 2023, hoje somam 10%. Mas, ao se considerar todos os tipos de uísque, o país ganha relevância mundial. Por aqui, o setor cresceu 16%, entre 2021 e 2023, atrás apenas do Japão e da Índia, conforme dados do Euromonitor International.

Se cabe aos escoceses ou aos irlandeses o título de criadores do uísque, não se tem ao certo. Mas o primeiro registro histórico referente à bebida data de 1494. Nele, o frade John Cor, da abadia do Condado de Fife, ao norte de Edimburgo, encomendou 48 galões de malte, destinados à fabricação da bebida para o rei James IV.

Uísque, do celta “uisge beatha”, “água da vida”. A bebida começou a ganhar o mundo entre meados e fim do século 19. Por volta de 1850, foi inventado o uísque blend, mistura de vários tipos de cevada, de várias destilarias. Com isso, a bebida barateou e ganhou escala.

Além disso, entre 1870 e 1890, uma praga devastou os vinhedos europeus, comprometendo a produção de conhaque — até então, o destilado mais consumido no continente.

Quase dois séculos depois, o single malt volta a sacudir a indústria ao se firmar agora como “água de investimento”.