Emilia Pérez faz barulho desde a sua première mundial, no Festival de Cannes. Logo nas primeiras projeções, em maio do ano passado, o longa que surpreende ao fundir temas pesados com a fantasia dos números musicais começou a ser atacado e aclamado — provavelmente na mesma medida e com a mesma intensidade.

E a polarização só cresce, desde que o musical assumiu a liderança nesta 97ª edição do Oscar, somando 13 indicações, inclusive a de melhor filme. É como se tudo o que mais agrada e também o que mais irrita (tanto a crítica quanto o público) tivesse agora mais peso, com a visibilidade alcançada por Emilia Pérez no prêmio máximo do cinema.

No Brasil, onde a produção acaba de estrear, a situação é ainda mais particular. Como o brasileiro é muito engajado nas redes sociais, ele coloca mais lenha na fogueira.

Como esperado, Emilia Pérez se tornou um alvo na internet, por se tratar do principal obstáculo de Ainda Estou Aqui na conquista do Oscar de melhor filme internacional, categoria na qual o drama histórico ambientado durante a ditadura militar tem mais chances de vencer (embora concorra também como melhor filme e melhor atriz, com Fernanda Torres).

Mas a situação ficou feia mesmo depois de a estrela de Emilia Pérez, Karla Sofía Gascón (que também bate de frente com Torres na categoria de melhor atriz), foi cortada da campanha no Oscar. Inicialmente, ela tinha acusado a equipe de Ainda Estou Aqui de incentivar ataques contra ela nas redes sociais, o que infringe as regras do Oscar. A Academia não admite que um concorrente fale mal do outro.

E a controvérsia só aumentou esta semana, quando a mídia resgatou nas redes sociais antigos posts racistas e xenofóbicos de Gascón.

Em um deles, ela comentou que há mulçumanos demais na Espanha — “em vez de inglês, teremos de ensinar árabe [nas escolas infantis]”.

Em outro, definiu George Floyd, assassinado por pliciais americanos, em 2020, como “um bandido viciado em drogas”.

E houve ainda aquele em que ela comentou sobre a premiação do Oscar de 2021: “Cada vez mais o Oscar parece uma cerimônia de filmes independentes e de protesto, não sabia se estava assistindo a um festival afro-coreano, a uma manifestação do Black Lives Matter ou ao 8M”.

Primeira mulher trans indicada ao Oscar de melhor atriz, agora, Gascón também não participa mais dos eventos para a promoção de Emilia Pérez, que ficou com a imagem arranhada junto à Academia — algo que pode favorecer o Brasil na festa agendada para 2 de março.

“Quando leio notícias, incluindo entrevistas minhas em meios de comunicação que permanecerão sem nome, sempre olho os comentários. E são sempre os mesmos comentários. Os mesmos comentários de ódio, independentemente do país, independentemente da situação. E ouvir a mesma coisa é tão cansativo”, disse Gascón, em encontro online com jornalistas, do qual o NeoFeed participou, antes do afastamento da atriz da campanha.

Musical melodramático

Mas, afinal, o que conta a favor de Emilia Pérez? A grandiloquência cinematográfica adotada pelo francês Jacques Audiard para narrar a excêntrica história de Juan “Manitas” Del Monte.

Trata-se da transição de gênero de um chefão do narcotráfico mexicano para mulher trans, movida não só pelo desejo de redesignação sexual, mas também pela vontade de abandonar uma vida de brutalidade, corrupção e violência extremas do submundo das drogas. Ao simular a própria morte, a protagonista abraça a chance de uma redenção.

Só o ineditismo da premissa já chama a atenção. E o interesse aumenta ainda mais por se tratar de um musical, gênero tradicionalmente mais utilizado para o desenrolar de histórias mais leves, sobretudo de amor.

“Ela está em uma abordagem autodestrutiva na qual não posso interferir", disse o cineasta Audiard sobre a postura da atriz espanhola (Foto: Instagram @parisfilmes e @ksarsiagascon)

Um das críticas ao filme é falta de atores mexicanos no elenco. Uma das personagens mais importantes do longa é interpretada pela americana Zoe Saldaña (Foto: Divulgação)

Audiard realmente ousou aqui, ao pontuar com números de música e dança uma trama com ares de novela mexicana marcada pelos efeitos devastadores dos cartéis de drogas, o que inclui cenas de policial de ação.

Como tudo ganha um peso descomunal, com a abordagem musical e melodramática, o filme é quase um delírio de grande impacto emocional, o que explica a aclamação de parte da indústria e da crítica. São mais de 240 indicações e 90 condecorações, incluindo o Prêmio do Júri de Cannes e os Globos de Ouro de melhor comédia ou musical e de filme em língua não inglesa.

Falta de autenticidade

Por que então Emilia Pérez é, ao mesmo tempo, tão atacado? Por ser um festival de clichês no que se refere ao México e à violência do narcotráfico, além do modo simplista como incorpora uma questão tão delicada quanto o desaparecimento de pessoas na guerra das drogas.

Aqui o mesmo chefão do cartel, responsável por morte e sumiço em massa, vira um ativista pelos direitos humanos, ajudando as famílias das vítimas, assim que Emilia adota a nova identidade, após a cirurgia de redesignação sexual.

Há ainda o agravante de falta de autenticidade, já que o longa sequer foi rodado no México e o elenco não conta com atores do país, exceto por Adriana Paz, na pele da viúva de uma vítima do cartel. Gascón é espanhola, enquanto Zoe Saldaña, que vive a advogada de Emilia, é uma atriz americana, com pais descendentes de dominicanos e porto-riquenhos. Escalada por Audiard como a mulher do narcotraficante, que desconhece o plano de transição de gênero do marido, Selena Gomez é neta de mexicanos.

A comunidade LGBTQIA+ ainda reclama da associação de um personagem trans com a criminalidade e do modo como a transição de gênero foi usada no roteiro — um trampolim para o líder do narcotráfico apagar o seu passado sangrento.

A transformação de personalidade e de sensibilidade é brusca demais, como se a protagonista tivesse trocado de cérebro com a cirurgia — o que soa falso e ridículo, demonstrando uma visão retrógrada e rasa, com o homem cruel virando uma mulher caridosa.

Emilia é ainda tão obcecada com a aparência que, depois de todos os procedimentos, nem a mulher ou os filhos a reconhecem, quando ela aparece como a “irmã” de Manitas.

"Não falei com ela, nem quero falar"

Audiard, por sua vez, sempre se defende dizendo que a jornada de Emilia é propositadamente exagerada, sem a intenção de funcionar como documentário. “A maneira como falo do filme hoje não é a mesma que falava há quatro anos, quando comecei a escrever. Muitas coisas foram aparecendo, fazendo com que eu continue a me surpreender”, contou o cineasta, no mesmo painel online.

Ele admite, sim, que falhou. Mas em outra questão. “Inicialmente, cometi um grande erro, o que percebi só depois de conhecer Karla Sofía e Zoe. No primeiro roteiro, Emilia tinha 30 anos e Rita, a advogada, 25. E foram as atrizes que detectaram o problema com as idades das personagens. Com 25 anos, você ainda não teve uma vida. E o mais importante, ainda não sofreu um drama ou uma tragédia real”, comentou Audiard.

A postura do cineasta mudou radicalmente, com a recuperação das antigas declarações de Gascón. Em entrevista ao portal americano Deadline, ele recriminou o modo como a atriz vem se comportando. Em sua opinião, a espanhola está se fazendo de vítima.

“Ela está em uma abordagem autodestrutiva na qual não posso interferir, e realmente não entendo por que ela continua. Estou pensando em como ela está ferindo os outros, em como ela está machucando a equipe e todas essas pessoas que trabalharam incrivelmente duro neste filme”, disse.

Sobre se ele pretendia conversar com Gascón, o francês foi suscinto: “Não falei com ela, e não quero falar”.