Em janeiro de 2018, o aplicativo de transportes 99 foi comprado pela chinesa Didi Chuxing e se tornou o primeiro unicórnio brasileiro. Há pouco mais de uma semana, a Méliuz alcançou outra proeza. A companhia de cashback abriu capital na B3, um feito até então inédito para uma startup do País.
Quase três anos e uma pandemia separam esses acontecimentos. Mas além de estabelecerem marcos para o ecossistema local de startups, as duas empresas têm ao menos mais um ponto em comum. Entre seus investidores, figurava o nome do alemão Florian Hagenbuch.
Essa não é, porém, a única faceta de Hagenbuch. Ele é cofundador da Printi, de serviços gráficos, e da Loft, unicórnio de compra e venda de imóveis. E outro componente também une essas operações: suas “máfias”, ou seja, a nova leva de startups que está sendo criada a partir de suas fileiras.
Longe de uma conotação pejorativa, o termo “máfia” é usado no Vale do Silício para se referir aos empreendedores e empresas gerados a partir de uma companhia. A mais conhecida é do PayPal, de onde saíram nomes como Reid Hoffman (LinkedIn); Peter Thiel, (Palantir); e Elon Musk (Tesla e SpaceX).
Somadas, as máfias da Loft e da Printi já contam com 12 novatas. É o caso da Baskets, startup de entregas de alimentos produzidos por pequenos produtores, que foi lançada em julho, por Kim Machlup, ex-líder de planejamento de reforma e impacto da Loft.
Outra operação recém-chegada ao mercado é a Cloud Humans. A empresa fornece times e squads remotos e tem entre os seus fundadores Ian Kraskoff, ex-diretor da Loft. A relação inclui ainda nomes como Superb, Izi, 4Shark, CocaiExpress, Ellas e Clube de Negócios.
“Nós sempre tentamos atrair pessoas que têm um pensamento de construção”, diz Hagenbuch, ao NeoFeed, sobre o perfil de profissional buscado nas empresas que ajudou a fundar. “E, com o tempo, isso inevitavelmente inspira essas pessoas a criarem seus próprios negócios.”
Mais que a geração de novos projetos, ele destaca um fator fundamental desse movimento. “O principal impacto, disparado, é a formação de mais talentos e empreendedores”, afirma Hagenbuch. “Especialmente em um mercado como o Brasil, que ainda é muito carente nessa área.”
Diretora-geral da Endeavor no Brasil, Camilla Junqueira ressalta outro efeito positivo. “A experiência acumulada por essas pessoas, com menor risco, amplia a chance das startups que eles criam serem bem-sucedidas”, diz. “E é bem vista pelos investidores.”
Quem também começa a gerar suas ramificações é a Creditas, fintech que já tem quatro startups em sua rede. Entre elas, a Lobby, de gestão de ambientes de trabalho. Criada pelo ex-CTO Leandro Costa, a novata já recebeu um aporte, de valor não revelado, do próprio Sergio Furio, fundador da Creditas.
Outra que já atraiu um investimento pré-seed de US$ 275 mil, com a participação da Y Combinator e da Domo Invest é a Conta Simples, que oferece contas digitais para freelancers, microempreendedores e startups. A startup foi fundada por Ricardo Gottschalk, ex-executivo de vendas da Creditas. A lista passa ainda pela Iperum, plataforma de pagamentos, e pela Meza, de real estate.
Loft, Printi e Creditas repetem um caminho trilhado pela própria 99. A startup fundada por Paulo Veras, Ariel Lambrecht e Renato Freitas já viu nascer, de seus corredores, 24 companhias, entre elas, novatas como a Kovi, de aluguel de carros para motoristas de Uber e 99; e a Quicko, que integra diversos meios de transportes. Outra companhia dessa lavra, a Spry, de pesquisa de mercado, foi comprada pela Loft, em fevereiro.
“Na 99, nós sempre demos muita corda e autonomia para as pessoas, até mesmo para sairmos daquele modelo tradicional de manda quem pode e obedece quem tem juízo”, afirma Paulo Veras, cofundador da 99. “É por isso que muitas empresas interessantes nasceram da turma que viveu aquele ciclo.”
A medida do impacto
O alcance das máfias ligadas a 99, Loft, Printi e Creditas não está restrito, no entanto, às startups que têm origem nessas empresas. Aos poucos, esse ecossistema vem sendo realimentado, em todo o seu ciclo, pelas primeiras gerações de empreendedores com projetos bem-sucedidos no currículo.
Hagenbuch, Veras e Furio personificam essa tendência. Assim como já acontece há décadas no Vale do Silício, eles atuam em várias frentes e já são responsáveis por um impacto considerável em toda a cadeia de empreendedorismo do País.
É o que mostra uma iniciativa da Endeavor, entidade sem fins lucrativos que apoia empreendedores de alto impacto. Além das empresas que eles fundaram e das novatas que elas geraram, o levantamento mapeou todas as startups nas quais o trio investiu, seja diretamente ou via fundos. E também aquelas que receberam mentorias desses empreendedores.
O projeto marca os 20 anos da chegada da Endeavor ao País. Com operações em oito estados, a rede apoia cerca de 200 empreendedores anualmente em seus programas de aceleração Scale-Up.
“Os mapas mostram claramente a capacidade que poucos empreendedores têm de gerar um grande impacto nesse ecossistema”, diz Camilla. “E que, muitas vezes, apenas um é suficiente para mudar a cabeça de uma geração de startups.”
Ela acrescenta que esse movimento tem mais apelo junto às startups com o histórico bem-sucedido dos três empreendedores. “Ter referências locais aliadas a redes de apoio são essenciais”, observa Camilla. “Até pouco tempo, não tínhamos máfias brasileiras. Ficávamos usando exemplos de fora.”
O mapa de Hagenbuch é um bom exemplo de como o empreendedor foi bem além das suas fronteiras. Desde 2014, ele fez aportes em 72 startups. Os investimentos incluem empresas mais recentes, como a Classpert, de comparação e busca de cursos online, até unicórnios como Gympass, QuintoAndar e WildLife.
Desde 2014, Hagenbuch investiu diretamente em 72 startups. Entre elas, unicórnios como Gympass, QuintoAndar e WildLife
A relação ganha mais 69 nomes com os investimentos liderados pelos fundos Canary e Atlantico, dos quais Hagenbuch é um dos fundadores. Aqui, figuram empresas como Buser, ChatClass, Boomerang, Docket, Gupy, Klivo e SocialMiner, comprada recentemente pela Locaweb.
Ao mesmo tempo, dez companhias já receberam mentorias de Hagenbuch. Entre elas, a Olist, loja virtual que já recebeu US$ 55 milhões em aportes de fundos como o Softbank, além da In Loco e da Hotmart.
“Eu sempre me orientei pela ideia de ecossistema que se autogere e se apoia”, diz Hagenbuch, que aponta outros benefícios dessas conexões além de eventuais retornos financeiros com os investimentos. “Eu já contratei pessoas e comprei empresas desse meu mapa de influência. É uma troca. Você doa e recebe.”
Quem também enxerga o lado positivo desse diálogo é Veras. Quarenta startups já receberam mentoria do empreendedor, incluindo companhias como MadeiraMadeira, Digibee e Contabilizei, e unicórnios como a Ebanx.
Veras ainda encontra tempo para outros aportes. Nessa frente, são nove empresas, sendo que o cheque mais recente foi assinado em julho, para a foodtech The New Butchers. Nessa frente, ele também compartilha investimentos com Hagenbuch e o Canary, casos das healthtecs Sami e Alice.
Furio, por sua vez, não é menos ativo. A gestora Magnetis e, novamente, a Loft integram a lista de 34 investidas do empreendedor, cuja lista de mentorias conta com BeeTech, Quero Educação, Acordo Certo e outras 13 companhias.
“Esses novos empreendedores são mais curiosos e abertos a trocar experiências e ouvir conselhos”, afirma Veras. “Na minha geração, o cenário era mais competitivo. Todo mundo olhava o mercado como um jogo de soma zero. Para você ganhar, alguém precisava perder.”
Esse diálogo só começou a acontecer, de fato, com a venda da 99 para a Didi Chuxing. “Isso trouxe liquidez ao mercado. Cinquenta pessoas lá dentro ganharam. Os investidores ganharam. Eu ganhei”, diz Hagenbach. “O que permitiu que muitos passassem a devolver isso para o ecossistema.”
“Na minha geração, o cenário era mais competitivo. Todo mundo olhava o mercado como um jogo de soma zero. Para você ganhar, alguém precisava perder", diz Paulo Veras
Ele entende que o IPO da Méliuz reforça esse círculo virtuoso, pois tem um efeito de rede “gigantesco”. “O empreendedor que está chegando ao mercado se inspira. Quem investe vai investir mais porque vê que tem mais uma saída”, diz. “Mas esse é só o catalisador de vários outros marcos que acontecerão. Estamos só no começo.”
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