O termo “ferrovias de papel” foi cunhado pela oposição ao governo Jair Bolsonaro para descrever o resultado de uma iniciativa, elogiada pelos especialistas, para estimular os investimos privados no setor: o regime de autorizações ferroviárias, anunciado em 2021.

A empresa interessada apresenta projeto no qual fica encarregada de obter licenciamentos junto aos órgãos competentes, de tocar os projetos de engenharia e de viabilidade socioambiental, além da busca de financiamento para construir e explorar novos trechos, a maioria para o transporte de cargas.

No papel, a iniciativa parece uma boa ideia. Desde então, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) recebeu 106 requerimentos, que geraram 45 contratos de autorizações ferroviárias. Juntos, prometem R$ 241,14 bilhões em investimentos para explorar 12.546 km de trilhos, quase metade da malha existente.

O problema é que, deste total, apenas dois contratos saíram da prancheta, ainda em fase de captação de recursos ou de obtenção de licença ambiental – o que explica o termo jocoso de “ferrovias de papel”.

E o governo federal atual manteve o hábito de anunciar projetos grandiosos em várias regiões do País. Só o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado no ano passado, prevê o aporte de R$ 94 bilhões no transporte ferroviário até 2026, entre dinheiro público e privado.

Alguns projetos que estavam parados foram retomados e houve uma conclusão importante – o da Ferrovia Norte-Sul, com 2,2 mil quilômetros de extensão, iniciada há 36 anos e com último trecho inaugurado há um ano -, o que animou especialistas e investidores.

Mas a sensação de quem espera ver a rápida modernização do sistema ferroviário brasileiro é a mesma de andar num trem a vapor dos anos 1830, época da primeira concessão de uma estrada de ferro no Brasil.

“Ferrovias custam caro e as obras são demoradas, mas para atrair investimentos precisamos criar leilões mais modernos e valorizar o ativo público federal nas renovações antecipadas de concessões para garantir um aporte ao setor privado nos projetos”, diz Renan Filho, ministro dos Transportes, em entrevista ao NeoFeed.

> Leia entrevista com Renan Filho, ministro dos Transportes

Renan Filho diz que as autorizações não avançaram porque ferrovia precisa de recurso público para deixar o VPL (Valor Presente Líquido, fórmula para identificar o valor presente de pagamentos futuros) positivo e atrair o setor privado.

“Para deixar o VPL positivo num investimento em infraestrutura pesada, como de ferrovia, é necessário um abatimento de capex colocado pelo Estado”, afirma o ministro. “Como nos projetos do governo anterior o Estado nunca botava nada, os projetos não andaram.”

Valores baixos

Das 16 concessões ferroviárias em operação, quatro tiveram contrato prorrogado pelo governo anterior, com a inclusão de investimentos obrigatórios em obras de capacidade e de solução de conflitos urbanos. O governo atual, no entanto, considera os valores negociados baixos.

A atual tentativa de revisão envolve a renovação antecipada de concessões de duas ferrovias da Vale (Estrada de Ferro Carajás e Estrada de Ferro Vitória-Minas), no valor de R$ 25,7 bilhões. Outros R$ 3,7 bilhões poderiam vir de uma concessão da MRS Logística, que administra 1.643 quilômetros de trilhos em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Procurada, a Vale se posicionou e informou que "a empresa segue em discussões com o Ministério dos Transportes sobre as condições gerais para otimizar os planos de investimentos nos contratos de concessão da Estrada de Ferro Carajás (EFC) e da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), nos termos estabelecidos e divulgados ao mercado em 16 de dezembro de 2020." A MRS não retornou ao pedido de posicionamento.

O ministro diz que, após negociações, espera obter entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões nesses contratos de renovação antecipadas. “Acreditamos que um aporte de 20% transforma um VPL negativo em positivo”, estima Renan Filho. “Se isso for verdade em leilão, porque vai ter que ser verificado empiricamente em leilão, podemos levantar ao menos R$ 125 bilhões para obras com esses aportes, desde que eu bote os meus R$ 25 bilhões.”

O ministro acredita que essa estratégia deverá impulsionar novos projetos além dos que estão andando. Ele se refere à Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO), ligando o Centro-Oeste à Ferrovia Norte-Sul e, consequentemente, aos portos estratégicos de Santos e São Luís. O trecho de 383 quilômetros, conectando Mara Rosa (GO) a Água Boa (MT), deverá ter um terço do trajeto concluído até dezembro.

Os estudos para a construção a Ferrogrão, ferrovia de 933 km ligando Sinop (MT) ao porto paraense de Miritituba, devem ser concluídos em seis meses. Esta semana, o governo deve assinar contrato de R$ 350 milhões de investimentos públicos na Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), licitado pela Infra S/A.

“Temos também a Transnordestina, ferrovia de R$ 7 bilhões que hoje já está com obra retomada, a qual estamos aplicando R$ 1 bilhão por ano”, diz Renan Filho.

Ferrovias “ineficientes”

O Brasil tem 30.653 km de extensão de malha ferroviária, dos quais 18,5 mil km se encontram ociosos — ou seja, são utilizados menos de 30% da capacidade instalada, de acordo com levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU).

Para Renan Filho, o País não tem ferrovias ociosas, mas sim “ineficientes”. “Aquele trem que passava nas cidades pequenas, andando a 10 quilômetros por hora, não concorre hoje nem com van, muito menos com caminhão”, diz. “Por isso o modelo quebrou, ficou obsoleto.”

Por essa razão, em sua visão, para ter ferrovias adequadas e vencer a concorrência com os caminhões é preciso que o trem ande com carga pesada a 80 quilômetros por hora. As observações do ministro também ajudam a entender por que a malha ferroviária dificilmente terá uma ampliação representativa nos próximos quatro anos.

“As melhores possibilidades são a conclusão da FIOL, na Bahia, de 1.500 km, que pode ficar pronta em 2028, com muito dinheiro alocado”, afirma Luiz Baldez, presidente da Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga (ANUT).

Um projeto ferroviário de porte costuma ter, em média, 500 km de extensão, com as obras avançando até 100 km por ano. Baldez estima que são necessários dois anos para fazer projeto, mais dois anos para as licenças ambientais – ele adverte que tem projeto que pode levar até quatro anos para obter licença, dependendo da região.

Com isso, uma ferrovia de 500 km pode levar de nove a dez anos para entrar em operação. “Ferrovia, além de ser cara, demora para ser aprovada. Por isso, é preciso aumentar o investimento público e privado e melhorar a regulação, no sentido de integrar a malha no sistema”, diz Baldez. “A parte regulatória tem de andar junto com investimento para criar as condições para dar atratividade ao setor privado.”

Os problemas mais citados por especialistas como Baldez seguem sendo ignorados nos anúncios de novos projetos. Eles incluem desde a falta de estímulo à diversificação das cargas transportadas por via férrea à ausência de unificação de bitola dos trilhos, o que impede a integração da malha, passando pela chamada interoperabilidade – a dificuldade de um comboio de trens obter o direito de passagem por uma ferrovia sob concessão para chegar ao destino, geralmente um porto.

Boa parte desses problemas explica por que 60% das ferrovias são ociosas. Para devolver um trecho ferroviário com baixa utilização, por exemplo, a concessionária tem de pagar indenização ao governo. “Essa indenização gira em torno de R$ 2 milhões por quilômetro, ou seja, numa ferrovia de 250 km, o concessionário tem de pagar ao governo meio bilhão de reais para devolver um trecho que não usa, com dormentes apodrecidos e tudo mais”, afirma Baldez.

Para Aline Guedes, especialista em infraestrutura e logística e professora da Faculdade Arnaldo Janssen, de Belo Horizonte, mais complexo é reverter as duas contradições do sistema ferroviário: a concentração de cargas no minério de ferro e do transporte das demais cargas no modal rodoviário.

A diferença dos custos de frete de grãos entre os dois modais expõe essa contradição. “O frete ferroviário sai por R$ 1,11 o saco de grãos, enquanto o transporte no modal rodoviário custa R$ 40 o saco, sem falar que um comboio de trens transporta carga equivalente a 120 caminhões.”

O monopólio das mineradoras, de acordo com Aline Guedes, facilita para que as concessionárias evitem o direito de passagem – permissão para que um comboio de trens utilize um trecho da ferrovia para atingir um porto ou outra conexão.

Para o ministro Renan Filho, porém, não se trata de monopólio. “É difícil liberar o direito de passagem nas ferrovias da Vale, por exemplo, porque ela utiliza 95% da capacidade”, afirma. “Então, se for imposto direito de passagem na malha da empresa ou ela teria de diminuir a exportação de minério ou não autorizar a passagem porque já usa toda a capacidade.”