O mercado brasileiro vive um momento inesperado, com bolsa de valores em alta e dólar em baixa. O Ibovespa, desde o início do ano, acumula 10,3% de valorização, enquanto a moeda americana se desvalorizou perto de 8% no Brasil. O movimento, no entanto, não inspira confiança em um dos gestores mais experientes da Faria Lima.

Para Felipe Guerra, sócio e CIO da Legacy Capital, que detém cerca de R$ 17 bilhões sob gestão, o movimento não passa de um reflexo do mercado internacional e os fundamentos – negativos – continuam os mesmos no País.

“A situação do Brasil é complicada. É como um paciente com diagnóstico claro, mas que segue tomando o remédio errado. Os médicos não enxergam o tratamento certo”, diz Guerra, em entrevista ao NeoFeed.

O remédio, explica, é a alta da taxa de juros, que subiu para 14,25% na última decisão do Comitê de Política Monetária (Copom), em março deste ano. Embora acredite que o ciclo de aperto terminará com a Selic em 15%, após mais duas elevações, o gestor, referência em decifrar os próximos passos do Banco Central, não descarta níveis ainda mais altos. “Se o governo continuar impedindo a desaceleração, o juro pode ter que subir ainda mais.”

No cenário internacional, Guerra atribui a perda de força do mercado americano às políticas tarifárias do presidente Donald Trump. O gestor, no entanto, classifica como “passageira” essa preocupação, que tem tomado os jornais e as mesas de negociação nas últimas semanas.

“Quando o cronograma e a intensidade das tarifas ficarem claros, o mercado tende a se acalmar e voltar ao trilho”, afirma. Para o CIO da Legacy, a recente desvalorização abriu oportunidades de compra, especialmente em ações relacionadas à inteligência artificial. “O valuation está mais atrativo e a expectativa muito baixa. Seguimos otimistas.”

Apesar dos ventos contrários, o gestor contou que fez poucas mudanças no portfólio desde o início do ano. A mais relevante foi a redução da posição comprada em dólar, dada a projeção de um menor diferencial de crescimento entre os Estados Unidos e regiões como Europa e China. Por outro lado, aumentou a aposta no euro, que, segundo ele, deve se beneficiar de estímulos fiscais, menos cortes de juros e com o fim da guerra entre Rússia e Ucrânia.

“O euro-dólar também é uma alternativa, mas ainda há incerteza com as tarifas. Quando isso ficar mais claro — tamanho, calendário, implementação —, pode ser uma boa posição comprada.”

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista com o CIO da Legacy:

Houve uma mudança de consenso com relação a Donald Trump ou o movimento do dólar para baixo é exagerado?
Com a eleição do Trump, criou-se expectativa de um governo mais market friendly, com corte de impostos, desregulação e controle de gastos. O mercado estava otimista e bem posicionado. Mas o estilo errático do Trump gerou incertezas e reduziu esse otimismo.

Em relação à equipe ou às atitudes dele?
O governo tem uma equipe muito boa, formada pelo Hassett, pelo Bassett, pelo Musk, que gera ainda muito otimismo. Mas o Trump, nesse modo mais errático dele de negociação, desvirtuou um pouquinho dessa expectativa. Eu diria que quando ele foi muito agressivo com relação aos parceiros comerciais, principalmente o México e o Canadá, com tarifas muito grandes, ele gerou incerteza com relação ao tamanho e à disposição dessas tarifas para tentar usar como moeda de troca.

"Quando o Trump foi muito agressivo, com tarifas muito grandes, ele gerou incerteza com relação ao tamanho e à disposição dessas tarifas para tentar usar como moeda de troca"

O mercado ainda confia no Trump?
O mercado ainda olha para o Trump 1.0, com a “Trump put” — a ideia de que ele gosta da Bolsa subindo e tende a intervir. Mas na última correção ele demorou a agir, o que mostrou que o “strike” da put pode ser mais baixo do que se pensava.

Esse comportamento é uma surpresa para o mercado?
Surpreendeu o mercado ver o Trump disposto a aceitar sofrimento de curto prazo para buscar benefícios no longo. A percepção foi de que tem que piorar mais para ele poder acalmar.

Esse foi o movimento de queda?
Quando a bolsa caiu, as posições diminuíram muito. As posições dos hedge funds deram uma boa reduzida, e hoje todo mundo está com a expectativa lá embaixo. O Trump é muito caótico, ele é turbulento, ele está brigando com a Justiça, ele está brigando com os parceiros, com os amigos, está brigando com os inimigos, enfim. A expectativa foi lá para baixo.

Como se posicionar neste momento?
O valuation está mais atrativo e a expectativa muito baixa. Achamos que é uma boa oportunidade de comprar ativos nos EUA, especialmente no setor de tecnologia, após a correção.

"Achamos que é uma boa oportunidade de comprar ativos nos EUA, especialmente no setor de tecnologia"

E o risco de recessão?
Não acreditamos em recessão, mas sim num slow down, por causa da antecipação de importações diante das tarifas. Isso reduz o PIB no curto prazo, mas deve ser passageiro. Quando o cronograma e a intensidade das tarifas ficarem claros, o mercado tende a se acalmar e voltar ao trilho.

Quando isso pode acontecer?
Já começou a acontecer. O Trump ficou mais calado e sua equipe tenta passar tranquilidade. Para o governo, não interessa manter o caos o tempo todo. Se as tarifas não forem intensas nem provocarem retaliação, o tema tende a ficar para trás.

Vocês chegaram a aumentar alguma posição em bolsa americana?
Já tínhamos posição e sentimos um pouco na queda, mas não reduzimos. Na sexta-feira [21/3], voltamos a aumentar. Seguimos otimistas com tecnologia e inteligência artificial. A correção veio com o mercado muito posicionado e valuation esticado, mas achamos que o cenário volta para o trilho.

Como é a exposição em inteligência artificial: é stock picking ou ETF?
Via ações, em geral. A gente gosta muito do setor de cloud, alguma coisa de semicondutores, basicamente é isso que a gente está olhando.

Na última carta, a concorrência com as empresas chinesas de inteligência artificial foi citada. O jogo mudou?
O caso da DeepSeek mostra que a China está longe de estar fora do jogo. Os modelos LLM estão mais eficientes, com menos uso de computing e mais retorno. O que chamou atenção foi o fato de ter sido um avanço chinês — se fosse americano, teria passado batido.

"Com as restrições dos EUA nos chips, a China busca outros caminhos, com muito dinheiro e investimento estatal. Talvez os EUA façam a Ferrari e a China, o Porsche"

Mas a China entrou nesse jogo.
A China é um player importante e está se posicionando. Com as restrições dos EUA nos chips, ela busca outros caminhos, com muito dinheiro e investimento estatal. Talvez os EUA façam a Ferrari e a China, o Porsche — mas ela está no jogo. É difícil deixá-la de fora.

Há algo que ela faça melhor?
Em robótica, a China hoje está mais avançada que os EUA. Por isso, eles estão correndo atrás — vide os esforços da Nvidia, do Jensen e do Musk. Mas os EUA têm total capacidade de liderar, com as maiores empresas e recursos do mundo.

Vocês chegaram a colocar dinheiro na China?
Temos muito pouca exposição à China.

Para onde vai a taxa de juros nos EUA?
A economia americana passa por um slow down, mas sem recessão. O Fed ainda está com juros restritivos. Se a incerteza — principalmente gerada por Trump com a guerra comercial — diminuir, o país pode retomar o caminho da normalização.

E se não diminuir?
Se a incerteza persistir, a economia pode desacelerar mais. Trump gera ruídos na imigração e nas tarifas. Mas, se essas incertezas caírem, o Fed pode seguir com a normalização e cortar juros, como já indicam as projeções.

E se o impacto no crescimento dos Estados Unidos for maior que o esperado?
Se os EUA desacelerarem mais, o Fed pode fazer insurance cuts — e até levar os juros abaixo da neutra. Se o mercado de trabalho piorar, esses cortes devem vir. Com menos incerteza, vemos dois cortes; com mais desaceleração, podem ser mais de dois ou três.

Qual desses dois cenários é mais provável?
Estamos mais no cenário de normalização, com espaço para um ou dois cortes — não de insurance cuts.

Continua aplicado na curva americana?
Reduzimos um pouco. O fechamento deste mês deixou o preço menos atrativo.

Se o Brasil fizesse um esforço fiscal como o dos EUA, com corte de gastos e demissões, o mercado comemoraria. O mercado está subestimando esse movimento fiscal do governo Trump?
O governo tem uma equipe boa, com boas ideias: destravar a economia e ajustar as contas públicas. A meta é reduzir o déficit de 7% para 3%, o que melhora o equilíbrio, permite juros mais baixos e torna a Bolsa mais atrativa. A política vai na direção certa. O desafio está na intensidade: tarifas demais confundem, cortes de impostos ajudam. A economia americana caminha para um ajuste saudável.

Vocês têm seguido um pouco esse novo consenso do mercado sobre a Europa, com mais otimismo?
Temos acompanhado com algum otimismo. A Alemanha aprovou pacotes fiscais relevantes, para infraestrutura e defesa — algo inédito em muito tempo. Isso pode frear a desaceleração, melhorar as perspectivas e incentivar outros países a seguir o mesmo caminho. O BCE pode acabar cortando menos juros, o que fortalece a moeda e valoriza os ativos. Ainda há o movimento do Trump tentando acalmar a situação com Ucrânia e Rússia.

"Temos posição comprada em euro contra o franco suíço — um par que sofreu muito na guerra e pode voltar"

Como a Legacy tem navegado nessa história?
Se houver um desfecho positivo na guerra, como o Trump quer, talvez estejamos mais próximos de uma solução. Isso, somado ao estímulo fiscal em curso, seria positivo para a região e para o euro. Por exemplo, temos posição comprada em euro contra o franco suíço — um par que sofreu muito na guerra e pode voltar. É uma forma de navegar esse cenário de mais fiscal, mais crescimento e, talvez, mais juros.

E euro-dólar, não?
O euro-dólar também é uma alternativa, mas ainda há incerteza com as tarifas. Quando isso ficar mais claro — tamanho, calendário, implementação —, pode ser uma boa posição comprada. Por ora, estamos fora do dólar, esperando chegar mais perto do dia 2 de abril para entrar.

Você falou que tem a percepção mais próxima do fim da guerra. Qual implicação pode ter para o mundo, no petróleo por exemplo?
Não vejo grandes impactos no petróleo. China e Índia continuaram comprando da Rússia, e o comércio global se ajustou com restrições. O preço não subiu tanto, então o fim da guerra não deve afetar muito. O impacto maior é na Europa: com o Trump apoiando menos a OTAN, a região precisa investir em defesa e infraestrutura. Isso gera mais união e nacionalismo. A reabertura do gás russo pode baratear energia na Alemanha e melhorar a competitividade industrial.

Em bolsa europeia vocês aumentaram a posição desde o fim do ano passado?
Temos alguns papéis na Europa, mas nada relevante. Na Ásia, estamos comprados em Índia e vendidos no México — um relativo que carrega bem, com a Índia crescendo mais e o México com juros mais altos. É uma posição menor na carteira.

Turquia, não?
A Turquia tem carrego interessante, mas a volatilidade política recente tira o apelo. Com muita volatilidade, o carrego perde relevância. O ministro da Fazenda segue forte e a política econômica vai na direção certa, mas ainda é preciso entender melhor os ruídos antes de se posicionar.

Aqui no Brasil, a bolsa subiu e o real se valorizou. Esse cenário aparentemente mais positivo é fictício?
Foi reflexo do cenário global. As moedas da América Latina — inclusive o real — se valorizaram juntas. No fim do ano passado, o pessimismo com o Brasil era grande, especialmente pela frustração fiscal. Com a melhora externa e a queda dos juros lá fora, houve espaço para correção. O Brasil reagiu até mais por conta do posicionamento mais negativo. Os movimentos daqui estão alinhados ao cenário global.

"No fim do ano passado, o pessimismo com o Brasil era grande. Com a melhora externa e a queda dos juros lá fora, houve espaço para correção"

A situação no Brasil não melhorou?
A situação do Brasil é complicada. É como um paciente com diagnóstico claro, mas que segue tomando o remédio errado. Os médicos não enxergam o tratamento certo. O Brasil está doente e tomando o remédio errado.

Qual é a dose errada?
O problema é subir juros para contrabalançar os gastos do governo. Isso pode levar o paciente à UTI — ou pior. O Brasil tem fragilidades: dívida alta, déficit elevado, juros caros. A dívida cresce 6 a 7 pontos [percentuais] por ano. Os sintomas são claros: inflação alta, câmbio depreciado, crescimento insustentável. Em vez de corrigir, seguimos com juros elevados e mais gastos. Os médicos erram o tratamento — e só agravam os problemas.

E quais são as consequências?
O Brasil vai ter que conviver com juros mais altos. O BC deve levar a taxa a 15% e mantê-la até o paciente entrar em coma. Juros altos punem empresas e Bolsa, mas ajudam o câmbio, desde que o cenário não se desorganize. Por isso, o portfólio seria vendido em Bolsa e comprado na moeda, com cautela. O país paga quase 8% de juros reais — e, enquanto errar o remédio, o prêmio vai continuar alto.

Como isso mexe com a gestão do portfólio?
Reduzimos a exposição ao Brasil e aumentamos lá fora, onde o cenário é mais claro. O governo perdeu credibilidade, a inflação segue alta e o desequilíbrio cresce. Isso deve afetar a popularidade do presidente — talvez a ponto de ele nem concorrer. O governo segue apertando vários botões ao mesmo tempo, sem clareza dos impactos. Isso só agrava os desequilíbrios e pressiona ainda mais a inflação.

O governo continua com suas medidas parafiscais?
Sim. O consignado é mais um estímulo de crédito quando o ideal seria desacelerar. Isso obriga o BC a subir ainda mais os juros. Há também os “vales puxadinhos” e a isenção do IR, que viram consumo direto e pressionam a inflação. É uma política contínua, parecida com a de 2014–2015, que pode acabar em depressão. O desequilíbrio cresce e a inflação segue pressionada — o que tende a desgastar ainda mais a popularidade do presidente.

"O desequilíbrio cresce e a inflação segue pressionada — o que tende a desgastar ainda mais a popularidade do presidente [Lula]"

No começo do ano, o mercado comemorou a perda de popularidade do governo e o desejo por Tarcísio em 2026. É cedo?
Sem dúvida, 2026 ainda está muito longe. Operar esse evento agora não faz sentido. O mercado projeta uma esperança de melhora, com política econômica mais acertada. O diagnóstico é claro: é preciso ajuste fiscal estrutural. Há espaço para isso — rever gastos tributários, mudar a regra do salário mínimo. Mesmo aprovando mudanças para 2027, já se geraria previsibilidade. Mas sem essa perspectiva, o desequilíbrio exige juros mais altos, agravando a dívida. As soluções existem, mas faltam vontade política e apoio do Congresso.

A taxa de juros vai a 15% este ano e só vai cair lá para frente?
A taxa só cai quando o paciente entrar em coma. Vai ser preciso sufoco nas empresas — dívida acelerando, demissões — para o BC cortar. Mas, como um transatlântico, o efeito demora. Se o governo continuar impedindo a desaceleração, o juro pode ter que subir ainda mais. No fim, quem mostra isso é o câmbio.

O Galípolo vai ser o guardião da inflação ou um novo Alexandre Tombini?
O Galípolo começou bem. A ata do Copom foi dovish na atividade, mas preocupada com a inflação — sem compromisso com alta em junho. Se parar, deve ficar parado por um bom tempo. Hoje, o cenário-base é alta de 50 pontos e, talvez, mais 25 em junho. Vamos ver se ele mantém o equilíbrio ou escorrega para linha Tombini.

Faz sentido uma posição vendida em bolsa no Brasil e comprada em real. Vocês têm assumido essa posição?
A gente está pequeno nessa posição. Estamos leves em Brasil, com pouca exposição tanto na Bolsa quanto no câmbio.

De modo geral, o que mudou mais significativamente desde o início do ano para agora no portfólio da Legacy?
Mudou pouca coisa. No início do ano, estávamos mais comprados em dólar, com os EUA crescendo forte. Mas com China e Europa estimulando, o crescimento global ficou mais equilibrado. Isso reduziu a atratividade do dólar e aumentou o apelo dos juros. Seguimos otimistas com Bolsa, especialmente em tecnologia. Hoje, preferimos combinar Bolsa com juros — ou só a Bolsa, dependendo do cenário.