Se terroir é uma palavra francesa que define a singularidade de um solo, ela se encaixa perfeitamente em um movimento que está tomando conta do mundo da gastronomia. Trata-se do “terroir do chef”, localizado dentro da cozinha de alguns restaurantes, onde os ingredientes base do menu são preparados artesanalmente para dar origem a pratos autorais.

“Em um mercado competitivo, como o da gastronomia, quanto mais particular o trabalho do chef, mais o cliente sente o impacto e é incentivado a sair de casa para consumir gastronomia. Com o acesso à informação, muitas receitas podem ser replicadas em casa, mas o que buscamos é oferecer algo que o cliente só encontre no restaurante”, explica ao NeoFeed o chef Tuca Mezzomo, chef à frente do Charco, em São Paulo.

Entre os produtos feitos na casa, o mais conhecido e reconhecido é a charcutaria, algo incomum em restaurantes por envolver processo muito longo – vários embutidos levam até 45 dias para ficarem prontos e há casos especiais, como o da copa, que demora seis meses.

“Manter essa consistência e ter esses produtos todos os dias no cardápio é um grande desafio, mas é o que define o nosso trabalho e é o que dá a assinatura do chef porque quando o cliente gosta da experiência ou de um produto específico, ele sabe que terá de voltar porque não há similar”, diz o chef.

Para atingir o nível de excelência, Tuca pesquisou, fez cursos e trabalhou em uma fazenda de porcos na Alemanha. “Lá, fazíamos o abate e preparávamos embutidos em um nível altíssimo, fornecendo para restaurantes estrelados do Michelin. Essa vivência deu a base para eu criar minha produção”, conta.

Mas quem pensa que o chef se contentou em dominar apenas a charcutaria está enganado. Atualmente, sua stracciatella se tornou mais um hit. O queijo italiano feito de mozzarella desfiada e creme de leite, com textura macia e cremosa é preparado todas as noites para ser servido bem fresco aos clientes.

E, agora, Tuca está se dedicando a outros laticínios, como manteiga fermentada e coalhada de cabra. Para dar conta de toda produção, que inclui ainda panificação, confeitaria e molhos, ele tem uma equipe dedicada que trabalha dez horas por dia.

Graças à tamanha dedicação, o restaurante recebeu a indicação do Bib Gourmet do Guia Michelin, além de ter seu nome na lista estendida do Latin America’s 50 Best Restaurants 2023, ocupando a 56ª posição.

Controle total da cozinha

A cozinha do Nelita, da Tássia Magalhães, do charmoso restaurante paulistano recomendado pelo Michelin, também vive uma agitação diária desde muito cedo para preparar diariamente massas, pães e molhos.

De tudo o que é produzido ali, a chef, que ano passado recebeu o prêmio New Talent Award, da renomada Le List, em Paris, aponta o Agnolotti de Queijo de Cabra como a perfeita expressão do “terroir” da casa. “Este prato traduz a essência do nosso trabalho: a delicadeza da massa fresca, o equilíbrio entre sabores marcantes e o cuidado com cada detalhe, do preparo artesanal à combinação dos ingredientes”, afirma.

Tássia Magalhães, do Nelita: “Muitos elogiam e ficam curiosos para saber mais sobre os processos. E isso é cria uma conexão mais forte com o restaurante”

Tuca Mezzomo, do Charco: "Em um mercado competitivo, como o da gastronomia, quanto mais particular o trabalho do chef, mais o cliente sente o impacto e é incentivado a sair de casa para consumir gastronomia"

Simone Xirata, do Jojo Ramen: "A ideia era oferecer um prato acessível financeiramente usando os melhores ingredientes disponíveis no mercado nacional. Então, entendemos que precisávamos assumir a produção de quase tudo"

A decisão de fazer tudo do zero foi tomada desde o início do Nelita, porque Tássia desejava ter o controle total sobre a qualidade. É claro que o maior desafio que ela, assim como outros chefs que seguem por esse caminho, enfrenta é a consistência diária, o que demanda tempo, disciplina e uma equipe muito alinhada.

Mas tudo para Tássia está tudo bem em enfrentar a correria e os desafios da rotina de sua cozinha porque seu prazer está em ver que os clientes percebem à primeira garfada o toque de originalidade do que é servido no Nelita. “Muitos elogiam e ficam curiosos para saber mais sobre os processos. E isso é cria uma conexão mais forte com o restaurante”, comemora a chef.

Para a empresária Simone Xirata, sócia do Jojo Ramen, além de criar essa ligação com clientes, a decisão de produzir os insumos dos pratos do cardápio surgiu de uma necessidade para a viabilidade do negócio.

“O ramen é um prato bem específico, e na época da abertura do restaurante [em 2016] havia poucos fornecedores para o nosso tipo de produto e na qualidade que buscávamos. Especialmente, macarrão, caldo e tarê”, lembra Simone.

“A ideia era oferecer um prato acessível financeiramente usando os melhores ingredientes disponíveis no mercado nacional, porque a outra alternativa era importar os ingredientes do Japão, mas isso nos causaria uma dependência e um risco maior. Então, entendemos que precisávamos assumir a produção de quase tudo”, complementa.

Hoje, a decisão se mostrou acertada, porque o Jojo Ramen tem três unidades na capital paulista e se tornou um dos queridinhos de quem é fã da iguaria. Antes de abrir as portas da primeira casa, no Paraíso, os sócios investiram cerca de seis meses entre implementar todos os processos de preparação dos ingredientes e chegar no nível de qualidade que desejavam – e no caso deles, a expectativa era alta pois visitaram restaurantes que fazem os melhores lámens em vários países, incluindo Japão.

Atualmente, da cozinha de produção do Jojo são elaborados todos os caldos – a base de frango, de porco e de vegetais –, o macarrão, a massa para a guioza, os tarês e todos os nossos toppings e acompanhamentos são preparados lá.

“Usamos um método de produção do nosso macarrão bem similar de como é feito no Japão. Importamos máquinas de lá porque elas são bem específicas por terem um misturador e um ‘perfilador’ adequados para fazer uma massa menos hidratada, que é característica do nosso ramen”, revela Simone.

Com a tecnologia, o Jojo pôde produzir massas com a elasticidade necessária para suportar a alta temperatura do caldo. “A mais fina delas, a hossomen, é feita com uma hidratação de 35% e precisa ser perfilada sete vezes antes de ser cortada, para adquirir a resistência e, ao mesmo tempo, manter a elasticidade.

Insumos também para drinques

Além de restaurantes, cervejarias artesanais e até bares de drinques têm investido cada vez mais na produção própria dos insumos. Um exemplo é o Trinca Bar & Vermuteria, point de bartenders e de amantes da mixologia em São Paulo.

Ali, como o próprio nome sugere, os vermutes rosé, branco e são as estrelas. Podem ser tomados puros ou em drinques muito bem elaborados. “Quando você assume a preparação do zero, consegue chegar ao sabor que pretende, porque controla todos os processos”, afirma Ale Bussab, bartender sócio do Trinca. Ele explica que o tempo de preparo dos vermutes varia muito, mas que ali levam cerca de 48 horas para ficarem prontos.

Apesar de ser adepto do artesanal, ele gosta de dizer que isso nem sempre é garantia de qualidade. “Se os ingredientes não forem bons, os esforços serão em vão porque o produto não será bom. A sacada é, além de estar sempre se desenvolvendo tecnicamente, procurar os melhores fornecedores”, acredita.

Outro ponto que Ale ressalta é a ligação que mixologistas, assim como chefs, que seguem pegada autoral têm com a sustentabilidade. No Trinca Bar, 70% dos ingredientes são reutilizados. Os amendoins usados no fat-wash do Peanutcillin, vira o biscoito que decora o coquetel. No Charco, todos os ossos viram caldos e cortes menos comerciais vão para embutidos.

E embora criar insumos do zero seja essencial para obter sabores e texturas especiais e dar aquele toque autoral que encanta fãs da boa gastronomia, é preciso que os chefs adeptos dessa tendência tenham espírito aventureiro para enfrentar mudanças de última hora e adaptar receitas quando um ingrediente não está disponível ou não tem a qualidade esperada.

“O lado bom é que, muitas vezes, esses contratempos levam a criações surpreendentes", lembra Thaís. Ainda assim, para a chef do Nelita, vale a pena o risco: "O trabalho artesanal é o futuro da gastronomia. As pessoas querem saber o que estão comendo e valorizam cada vez mais o que é feito com tempo, cuidado e transparência.