Ao longo de mais de uma década, Edson Rigonatti, sócio da Astella Investimentos, ajudou as startups de seu portfólio de diversas maneiras. Primeiro com capital (é claro). Depois, auxiliou-as a estruturar sua máquina de vendas, item fundamental para que as companhias possam escalar e ganhar clientes.
Mas, nos últimos anos, esse expertise, ainda essencial para qualquer startup, não é por si só suficiente. “O capital está abundante no mundo”, diz Rigonatti, ao NeoFeed. “A única diferença é a base de talento.”
De fato, há muito capital disponível. No ano passado, por exemplo, as startups brasileiras receberam o volume recorde US$ 9,4 bilhões em aportes, um crescimento de 170%, segundo o Distrito. Talento, no entanto, é um artigo cada vez mais raro e um dos grandes gargalos atuais para as empresas iniciantes crescerem de forma acelerada.
Segundo um relatório da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação, o déficit de profissionais dessa área pode chegar a 260 mil até 2024. Além disso, o home office abriu as fronteiras brasileiras para empresas de fora, que vêm aqui “caçar” os melhores talentos do País – e ainda pagam em dólares ou euros.
Esse dilema (muito capital e pouco talento disponível) fez a Astella se questionar. Se os fundos de venture capital já ajudam as startups a acertarem suas engrenagens de vendas, por que não apoiá-las também na busca de bons profissionais?
No começo de fevereiro, a Astella contratou para o seu time Ana Rezende. A nova funcionária não vai cuidar da seleção de startups para a gestora investir. Nem vai ajudá-las a definir estratégias para ganhar mercado. A missão de Ana é outra: auxiliar as empresas a construírem suas “máquinas de talentos”.
“Claro que existe uma dor urgente na contratação, diante da escassez da talentos”, afirma Ana, que é formada psicologia, com MBA em administração. “Mas é preciso criar uma avenida em paralelo para formar profissionais de forma sustentável e escalável.”
Os fundos de venture capital sempre estiveram por trás de contratações de profissionais do alto escalão para as startups de seu portfólio, dada a extensa rede de contatos e de relações que possuem. Agora, eles estão elevando esse expertise a outro nível.
Nos Estados Unidos, os principais fundos de venture capital, como o Andreessen Horowitz e a Sequoia Capital, já montaram estruturas para apoiar os empreendedores em suas políticas de contratação e retenção. No Brasil, isso está começando a ganhar cada vez mais corpo.
E não é preciso ser um expert para entender os motivos. Capitalizadas, as startups estão com planos para crescer de forma acelerada. Para conseguir atingir essa meta, elas precisam de gente. Muita gente. Um olhar rápido pelas principais empresas dá uma dimensão dessa dor.
O banco digital N26, por exemplo, abrirá 300 vagas em 2022. Mais de 50% dos cargos são para profissionais de tecnologia e produto. A insurtech Justos tem 10 vagas para preencher. A Kovi, que aluga carros para motoristas de aplicativos, 23. A Tembici, de mobilidade urbana, quer contratar 70 pessoas para diversas posições.
“Se alguém falar que não tem dificuldade para contratar, você pode duvidar”, diz Cláudio Mifano, fundador e CEO da Livance, startup do portfólio da Astella que aluga espaço e fornece tecnologia para profissionais de saúde montarem seus consultórios, uma mistura de AWS com WeWork. No momento, ela tem 22 vagas abertas e um plano robusto de abertura de novos escritórios – pelo menos quatro até abril deste ano.
A verdade é que, até onde a vista alcança no mundo das startups, há gente contratando, um cenário bem diferente do País, que conta com 12,4 milhões de desempregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E isso criou um novo problema. Não basta contratar. É preciso saber também formar e reter.
“Os fundos de venture capital estão percebendo o custo de contratar uma pessoa inadequada”, afirma Sergio Chaia, coach e mentor de CEOs e empreendedores. “Trazer a pessoa certa é cada vez mais fundamental, tanto no C-level, como no nível gerencial e no exército de devs.”
Observe o exemplo do Softbank Latin America, que montou uma equipe de cinco pessoas para ajudar as startups do portfólio a contratar talentos. Só em 2021, esse time que é liderado por Alex Szapiro e por Francisco Sorrentino, sócio que cuida da área de RH, apoiou 60 startups em que o fundo investe em 230 contratações no C-Level, no board e em cargos de diretoria.
Ao mesmo tempo, o Softbank criou uma área de carreira em seu site para permitir que as startups possam anunciar as vagas disponíveis em cargos gerenciais e de tecnologia. Até agora, são mais de 1 mil “classificados” de empresas como Mercado Bitcoin, Frubana, Creditas, Gympass, Loft, Loggi e Kavak e entre tantas outras.
O General Atlantic, que investe em empresas como unico, Hotmart, Neon e QuintoAndar, também está apostando em talentos e contratou no começo deste ano Andrea Beer para cuidar da área de “capital humano” para a América Latina. Antes, ela atuava na empresa de recrutamento de executivos Egon Zehnder.
“O tamanho do gap agora está dramático”, diz Felipe Matos, presidente da Abstartups, associação que representa as startups. “Contratar bem, desenvolver e reter talentos é o que faz a diferença das startups que vão conseguir crescer daquelas que não vão conseguir.”
As gestoras de venture capital, no entanto, não vão substituir a área de RH das startups, muito menos funcionar como headhunters para as empresas de seu portfólio. “O nosso papel é ajudar o empreendedor em tudo aquilo que é necessário para ser bem-sucedido, desde o capital, passando pelo apoio emocional, chegando até o talento”, afirma Rigonatti. “Mas quem executa é o empreendedor.”
Essa será a missão de Ana, da Astella, que trabalhou em empresas como Renault, Kraft Foods (Mondelez), Embraco (grupo Whirlpool), Imaginarium e RD Station. Ela está criando cinco engrenagens para que as startups possam pôr para funcionar uma máquina de talentos. “Quero contratar, formar e crescer”, diz ela.
A primeira engrenagem é a cultura, que define quais os comportamentos que a startup quer organizar. Depois vem o que Ana chama de ‘get’, ou seja, quem será contratado. Na sequência, aparece o “grow”, para ajudar os profissionais a se desenvolverem e performarem.
O quarto item é o “keep”, que tem a missão de manter as pessoas engajadas. E a última engrenagem é a liderança, o alto escalão que toca a startup. “Todas elas são interdependentes e precisam trabalhar em uma velocidade adequada”, afirma Ana.
O objetivo da máquina de talentos é evitar algo que tem se tornado comum no mercado brasileiro. Sem formar e reter, as startups só contratam. E os melhores talentos ficam pulando de uma empresa para outra, como um macaco de galho em galho.
“Está uma carnificina generalizada. É um jogo de rouba-monte”, diz Marcio Gadaleta, sócio responsável pela prática de transformação digital da Russell Reynolds Associates, consultoria especializada na contratação de executivos C-Level, que tem ajudado muitas startups no Brasil e no mundo.
Esse cenário de alta competição, de acordo com Gadaleta, tem feito as startups a pagarem salários equivalentes ao de grandes corporações para atrair bons profissionais, o que não era comum para as empresas iniciantes até pouco tempo atrás. E, dado a escassez de talento, elas “caçam” também em lugares que não estão habituados. “Elas estão buscando profissionais nos mercados tradicionais”, diz o sócio da Russell Reynolds Associates.
Outro fator para atrair as melhores cabeças inclui a oferta de “equity” para os principais executivos e os profissionais considerados chaves em cada área da empresa. Essa é uma estratégia usada pelas startups em estágio mais avançado e com planos de abrir o capital em um horizonte curto de tempo.
Para os mais jovens, Gadaleta diz que o que os atrai é o propósito. Na Livance, por exemplo, esse é um argumento para contratar bons profissionais. “Eles querem ver o ponteiro do mundo se mexendo”, diz Mifano, cuja startup atua na área de saúde. Em seu processo de onboarding, o fundador da Livance mostra vídeos de depoimentos de clientes e pacientes que contam como a startup impacta suas vidas.
Mas isso não significa que os mais jovens irão passar muito tempo no mesmo emprego. Uma pesquisa da Russell Reynolds Associates mostrou que profissionais da área de serviços financeiros passam, em média, 2,2 anos na mesma empresa.
Parafraseando Macunaíma, o personagem sem nenhum caráter criado pelo escritor Mário de Andrade: "Muito capital e pouco profissional, os problemas das startups são." Só não dá para dizer: "Ai, que preguiça." Para os fundos de venture capital, é a hora de arregaçar as mangas e ir para a guerra.