Fundado em 1999 na Argentina, o Mercado Livre desde cedo estabeleceu uma base no Brasil, que se transformou, ao longo do tempo, seu principal mercado, com mais de 50% de seu faturamento. Tanto que o País foi (e ainda é) essencial para que a companhia se tornasse a maior empresa em valor de mercado da América Latina, avaliada em US$ 67,7 bilhões na Nasdaq.
O caminho pioneiro percorrido pelo Mercado Livre é agora cada vez mais seguido por outras startups latino-americanas, que estão desembarcando no Brasil em busca de um mercado grande capaz de fazer escalar seus negócios, justificar aportes milionários e, em alguns casos, avaliações bilionárias.
São os casos da fintech colombiana Addi e da mexicana Clara. Mas também da startup de compra e venda de carros Kavak e da corretora de criptomoedas Bitso. Ou da protech Casai, que levantou US$ 53 milhões e chegou para competir com Housi, da Vitacon, e Nomah, da Loft. E até mesmo da Merama, que captou US$ 160 milhões e se propõe a ser a “Unilever das marcas digitas”, nascendo simultaneamente no Brasil e no México.
Em comum, nesses casos, é o fato de que todas miram o Brasil como seu mercado preferencial a partir de agora. “No médio prazo, o Brasil vai ser a geografia mais importante para a Addi”, afirmou ao NeoFeed Daniel Vallejo, fundador da fintech que oferece um crediário digital para varejistas de todos os portes e que está operando desde março deste ano no País.
Há razões óbvias para essas startups escolherem o Brasil como estratégia de expansão. O País conta com um mercado consumidor de mais de 200 milhões de pessoas e é a maior economia da América Latina com um PIB de R$ 7,4 trilhões. Isso, por si só, já seria suficiente para atrair a atenção de investidores e de empreendedores.
“Não fazia sentido construir uma empresa e não começar a atuar no Brasil já no nosso primeiro ano de operação”, diz Gerry Giacomán Colyer, cofundador e CEO da Clara, que vai começar a operar no Brasil em julho deste ano depois de receber um aporte de US$ 30 milhões liderado pelo fundo DST Global e que contou com a participação de investidores como Monashees e Kaszek.
Há também outro motivo que justifica essa “invasão”. E esse é simplesmente matemático: é difícil captar grandes somas de recursos com uma tese restrita aos países de língua espanhola. “Somente incluindo o Brasil na equação para montar uma startup que vale entre US$ 100 milhões e US$ 500 milhões”, afirma Bruno Dalapria, sócio sênior da NXTP, fundo argentino que já investiu em mais de 200 empresas em estágio inicial – a maioria delas fora do Brasil.
Dito assim, parece uma missão fácil conquistar o Brasil. Basta desembarcar por aqui para ganhar o mercado. Mas essa é uma tarefa complicada. A competição é muito mais acirrada e o ambiente de negócio não é simples de ser domado por estrangeiros.
Observe o exemplo da mexicana Kavak, que passou a valer US$ 4 bilhões após um aporte de US$ 485 milhões de fundos de ventures capital como D1 Capital Partners, Founders Fund, Ribbit Capital e Bond Capital – antes já havia atraído Softbank e Kaszek.
"Nós definitivamente prevemos o Brasil como o maior mercado para a Kavak", disse Carlos Garcia Ottati, cofundador da Kavak, em entrevista à Reuters, na ocasião do aporte, em abril deste ano.
Mas, para atingir essa meta, a Kavak terá de enfrentar startups que atuam de forma semelhante, como Volanty, Carflix e Creditas (que acabou de entrar nesse negócio), e, principalmente, locadoras de veículos, a exemplo de Localiza, Movida e Unidas, que têm negócios bilionários de vendas de carros usados.
Há poucos anos, essa era uma missão quase impossível. Mas atualmente já não é mais uma barreira intransponível. Afinal, algumas startups começaram a mostrar que é possível ganhar um lugar ao sol no Brasil.
Além do Mercado Livre, o aplicativo de delivery Rappi, fundado pelos colombianos Simón Borrero, Juan Pablo Ortega, Guillermo Plaza Roche, Felipe Villamarin e Sebastian Mejia, é um exemplo de companhia latino-americana que conseguiu ganhar tração no Brasil, competindo com a brasileira iFood, mas também o gigante americano Uber.
As barreiras culturais e de regras de negócios, é verdade, ainda existem. Mas elas estão ficando menores do que há uma década. “As startups perceberam que os mesmos problemas de seus mercados tradicionais existiam no Brasil”, afirma Mônica Saggioro, cofundadora da MAYA Capital, que tem algumas startups latino-americanas em operação no mercado brasileiro.
Entre elas, estão a startup de alimentos a base de plantas chilena NotCo e a de segurança digital colombiana Truora. “A fraude atinge muitos países na América Latina. Verificação de antecedentes e checagem de identidade são essenciais em qualquer lugar”, diz Saggioro.
Os fundos de venture capital são fundamentais para a expansão dessas startups para outros países da América Latina, em especial o Brasil. As gestoras aprovam os planos das startups e fornecem o capital necessário para que as operações deixem suas fronteiras nativas e cheguem por aqui.
É o caso da MAYA Capital, mas também de Monashees (a gestora é uma das investidoras da Addi e Clara, citada no começo dessa reportagem) e, principalmente do argentino Kaszek, criado por Nicolas Szekasy e Hernan Kazah, fundadores do Mercado Livre, que acaba de captar dois fundos de US$ 1 bilhão somados para investir em startups da região.
“Nos últimos 10 anos, muitas das companhias que investimos nasceram fora do Brasil e depois vieram para cá”, afirma Santiago Fossatti, sócio da Kaszek. “Há muitas semelhanças entre os mercados na região e os aprendizados de um país podem funcionar em outro muito bem.”
Na lista estão startups como a de comércio eletrônico Nuvemshop e a escola de programação DigitalHouse, que são de uma “safra” mais antiga de investimentos, mas também Casai, Kavak e Bitso, que acabou de ser avaliada em US$ 2,2 bilhões após receber um aporte de US$ 250 milhões, liderado Tiger Global e Coatue.
Mas uma coisa é consenso para conseguir brilhar no Brasil: não basta despejar um caminhão de dinheiro para garantir sucesso no mercado brasileiro. As estratégias precisam ser adaptadas. E principalmente uma equipe local, que conheça o mercado, precisa ser contratada desde o começo da operação.
A Rappi, que vale US$ 3,5 bilhões, chegou ao Brasil com a ajuda do fundo ONEVC, que entrou na rodada séria A da startup em 2017. “Foi uma situação ganha-ganha-ganha”, disse Bruno Yoshimura, cofundador da ONEVC, em entrevista ao programa Café com Investidor, do NeoFeed. “A DST e a Sequoia queriam expandir a Rappi para o Brasil e tínhamos as conexões para montar o time local.”
A Addi, por exemplo, contratou Caio Ribeiro, que trabalhou quase 10 anos no Mercado Livre, para ser o responsável pela filial brasileira em novembro do ano passado, antes do início da operação. A startup captou R$ 350 milhões em equity e dívida para ser usado para crescer no Brasil.
Vallejo, que é um dos fundadores da Addi, mudou-se também para Brasil. “Temos que trazer gente que conhece a companhia de dentro, mas também passar a mensagem que o centro de gravidade está mudando”, diz o empreendedor.
A operação brasileira da Addi conta com 30 pessoas e deve dobrar de tamanho nos próximos meses. No momento, são 50 parceiros comerciais que usam a solução de crediário digital da startup. “Criamos uma equipe brasileira, que conhece o País e a cultura. Esse foi um dos nossos primeiros passos no Brasil”, afirma Vallejo.
Mas a “invasão” de startups de países da região no Brasil não é um caminho de mão única. Como ser global não é uma missão fácil – e é tarefa para poucos – outros países da América Latina se tornaram também o destino preferencial de alguns dos principais unicórnios dos País, como são chamadas as startups bilionárias.
O Nubank, fundado pelo colombiano David Vélez, por exemplo, já conta com operações no México e na Colômbia. A Creditas, do espanhol Sergio Furio, está também no México. E o QuintoAndar, dos brasileiros Gabriel Braga e André Penha, que acabou de ser avaliado em US$ 4 bilhões, está se preparando para desembarcar em solo mexicano com sua plataforma de compra, venda e aluguel de imóveis.