Um misto de expectativa e apreensão ronda o mercado financeiro e muitos economistas quanto ao anúncio, previsto para a próxima semana, dos resultados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), referentes ao balanço do quarto trimestre do ano passado e ao consolidado do banco em 2024.
Com desembolsos para financiamentos crescendo trimestre a trimestre na nova gestão, que assumiu o banco em janeiro de 2023 sob o comando de Aloizio Mercadante, o temor é a volta do “velho” BNDES dos governos petistas anteriores - uma torneira aberta de concessão de crédito que acabou elevando a inflação e contribuindo para mergulhar o País na crise econômico-financeira de 2015-2016.
O apetite do BNDES está em ascensão. De acordo com dados do Banco Central (BC), o saldo dos recursos do banco direcionado somente às empresas cresceu 2% em janeiro de 2024 sobre o mesmo mês do ano anterior. Esse apetite aumentou mês a mês e encerrou dezembro com um avanço de 8%, para R$ 434,7 bilhões.
A expectativa é de que o BNDES apresente resultados robustos, como ocorreu no terceiro trimestre de 2024 – quando registrou lucro líquido de R$ 19 bilhões, aumento de 31% em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, e uma carteira de crédito total acumulada no ano de R$ 550,3 bilhões, a maior desde 2017.
Outros dados em tese positivos também causaram preocupação, como o avanço desproporcional em relação ao terceiro trimestre de 2022 - último ano da gestão anterior, de Jair Bolsonaro - na liberação de créditos para a indústria (aumento de 293%), comércio e serviços (de 122%) e de pequenas e médias empresas, as PMEs (de 92%).
O quadro fiscal delicado do País está por trás dessa apreensão. Com o governo federal de mãos atadas para capitanear a retomada da expansão de crédito, pois está limitado pelas regras do arcabouço fiscal, são nítidos os sinais de que o Executivo está recorrendo ao que os economistas chamam de política parafiscal – um conjunto de medidas adotadas pelo governo para influenciar a atividade econômica por meio de atalhos, tendo como eixo os financiamentos do BNDES.
A estratégia inclui desde repasses para o banco de fundos “carimbados” do Orçamento, como do Pré-Sal, do Clima, da Marinha Mercante e da Aviação Civil – que, em tese, não poderiam engordar o caixa do BNDES -, à criação da Letra de Crédito de Desenvolvimento (LCD), um novo papel para lastrear financiamentos.
Segundo o BC, o ritmo de crescimento dos recursos direcionados, que são aquelas operações de crédito regulamentadas e geralmente com vínculo em algum recurso orçamentário, ficou na casa de dois dígitos ao longo do ano passado. Em dezembro, o crédito direcionado às empresas por essa modalidade estava em R$ 894,4 bilhões, um avanço de 10% sobre o mesmo mês de 2023 e pouco mais de 20% sobre dezembro de 2022.
“O que o BNDES está fazendo é comer pelas beiradas”, diz o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper, para quem o banco de fomento começa a repetir os passos do período 2010-2015, embora com uma escala menor de recursos.
Segundo ele, muitas das medidas envolvendo o banco e chanceladas pelo governo, além de neutralizar o esforço pós-2015 do BNDES de pôr fim aos juros subsidiados e a farta distribuição de financiamentos, acabam prejudicando o arcabouço fiscal e o equilíbrio das contas públicas.
O economista cita como exemplo a criação, no ano passado, da LCD - um título de renda fixa lastreado pelo BNDES que financia projetos de desenvolvimento do País (ao qual o banco já captou R$ 9 bilhões).
Ele se diz crítico à LCD por competir diretamente com financiamento do Tesouro, além de dar autonomia ao BNDES para pisar no acelerador de emissões, num momento em que a política econômica exige conter a expansão do crédito.
Mendes adverte ainda para uma série de recursos de fundos do orçamento que estão sendo repassados pelo governo para o BNDES, via despesa financeira, para que o banco amplie o crédito na ponta, fechando o ciclo da política parafiscal.
“São vários mecanismos que, na prática, fragilizam o controle da política fiscal, porque não se registra essas despesas como primária - que não aparecem na conta do déficit -, mas acabam tendo os mesmos efeitos: aumentam a dívida líquida e a dívida bruta, estimulam a demanda agregada e, portanto, pressionam os preços”, diz Mendes.
Na prática, além de evitar sobrecarregar o orçamento público tradicional, a política parafiscal atinge vários objetivos numa mesma tacada: reforça o caixa do BNDES para liberar financiamentos, engordando os lucros do banco, que por sua vez os repassa de volta ao governo na forma de dividendos e participações.
Espécie de cereja do bolo, esses dividendos do BNDES – cujos repasses ao Tesouro somaram R$ 29,5 bilhões no ano passado - ainda foram usados para a equipe econômica atingir a meta de déficit primário de 2024.
Crédito na mão
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o primeiro a admitir que o objetivo do governo é estimular o crédito - as limitações do arcabouço fiscal e o risco de elevar a inflação, por enquanto, ficam fora dessa equação.
Desde o início do mês, Lula vem prometendo medidas de estímulo ao crédito envolvendo bancos públicos, com foco especial no apoio a pequenos empreendedores e na ampliação do financiamento para setores estratégicos, como infraestrutura e indústria, por meio do BNDES.
Na semana passada, Lula afirmou que "dinheiro bom é na mão do povo", ao anunciar o novo modelo de crédito consignado privado, sem nenhuma limitação dos juros que poderão ser cobrados. A medida será enviada ao Congresso Nacional.
“O Brasil vai crescer mais, porque tem uma coisa acontecendo nesse país, temos o menor nível de desemprego da história, crescimento da massa salarial e a quantidade de crédito que nunca teve e vamos anunciar mais políticas de crédito”, disse Lula, na sexta-feira, 14 de fevereiro.
Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, afirma que a aprovação do crédito consignado privado reforça a política parafiscal do governo, pois é uma medida de estímulo ao crédito que passa ao largo das regras rígidas do arcabouço.
De acordo com o economista, quando aprovado, o crédito consignado privado deve crescer rápido com a escalabilidade dos bancos envolvidos.
Outro exemplo do viés parafiscal estimulado pelo governo é a renegociação das dívidas dos Estados com a União, que deve injetar entre R$ 45 bilhões e R$ 50 bilhões na economia dos Estados.
“Esse valor pode subir de R$ 60 bilhões para R$ 65 bilhões, se considerarmos acordo com as bancadas do Rio e de São Paulo na Câmara para derrubar vetos no programa aprovado”, afirma Barros.
Nesse contexto, o economista cita o papel do BNDES como fundamental para alimentar a política parafiscal do governo. Barros observa que o banco está subsidiando em torno de 1,1% do PIB – ainda longe dos cerca de 4% do PIB do ciclo 2010-2015.
“O Mercadante não escreveu, mas falou - portanto, no fio do bigode -, que a meta é levar os desembolsos do banco para 2% do PIB, o que significa mais dinheiro na economia”, diz, acrescentando que o próximo balanço do banco deve refletir grande aumento de consultas e aprovações de crédito feitas no fim do ano passado.
Barros afirma que a estratégia do governo é clara: manter a economia superaquecida e usar o dinheiro por fora do arcabouço. Nos cálculos da gestora, os estímulos parafiscais do governo, somando os tradicionais e os não-convencionais, será de 2% do PIB neste ano e de 2,9% em 2026.
Marcela Kawauti, economista-chefe da Lifetime Gestora de Recursos, afirma que a política parafiscal neutraliza o esforço do arcabouço de direcionar os gastos do governo. “Os estímulos parafiscais, traduzidos na ingerência do governo no BNDES e nos bancos públicos, têm menos limites para segurar esse ímpeto gastador do Executivo”, afirma.
A economista prevê consequências se o governo aumentar os estímulos parafiscais: impulso extra da economia acaba gerando inflação e diminui a potência da política monetária. O IPCA acumulou altas nos anos de 2023 e 2024, respectivamente, de 4,62% e 4,83% - acima do teto de tolerância de 4,5%.
“Para segurar essa inflação, o Banco Central precisa ir mais longe porque funciona como se fosse uma torneira parcialmente entupida: você tem que colocar uma força maior ali para a taxa de juros chegar na ponta final”, diz Kawauti.
Esse comportamento já está presente na concessão de crédito para empresas. A Selic acumulada e anualizada em dezembro do ano passado era de 11,8%, mas o juro cobrado em empréstimos de instituições financeiras já estava em 22,1%, enquanto que pelo BNDES era de 13,7% e dos recursos direcionados, que são subsidiados, de 13,4%.
Barros, da gestora ARX, vê o Banco Central como o elo fraco nessa cadeia parafiscal, uma vez que a nova gestão – sob comando de Gabriel Galípolo, indicado pelo presidente Lula – ainda não foi testada, atuando nos dois meses de 2025 com as diretrizes da gestão anterior, de Roberto Campos Neto.
“Sem o fiscal ou o parafiscal, o BC teria de colocar a Selic em 17% a 18% para baixar a inflação, mas o mercado não confia que vai fazer o que tem de ser feito para a inflação voltar para a meta”, afirma Barros. “Há uma crise de confiança na política econômica e não é só a fiscal, é a monetária também.”
Guinada pós-2015
O uso da política parafiscal do Executivo é apenas um dos aspectos que diferencia a atual gestão do BNDES das anteriores – leia-se dos governos Michel Temer (2016-2019) e Jair Bolsonaro (2019-2023).
O governo Temer iniciou um processo de devolução de recursos do BNDES ao Tesouro, a fim de reduzir a dívida pública, resultando numa diminuição significativa do tamanho do banco em relação ao PIB.
A gestão Bolsonaro manteve essa política de redução da atuação do BNDES, deixando-o mais voltado ao financiamento de pequenas e médias empresas, além de projetos sustentáveis.
O economista Dyogo Oliveira - que foi ministro do Planejamento e, em seguida, presidente do BNDES no governo Temer - diz que a retomada de desembolsos do banco era esperada após superadas as auditorias e questionamentos que foram feitos ao banco a partir de 2015.
Além disso, o mercado de capitais, apesar do avanço dos últimos anos, não é grande o suficiente para financiar todo o estoque de investimento de longo prazo que a economia brasileira exige.
Em relação ao crescimento de desembolsos do atual governo, Oliveira não vê ainda mudanças significativas, dentro da média histórica anual de 1% do PIB, lembrando que a governança do corpo técnico do banco dificulta um “cavalo de pau” na gestão do banco num período tão curto.
“O BNDES segue um processo muito bem estruturado de governança, resultado de construção de muitos anos, com funcionários com grande qualidade técnica e operacional”, afirma Oliveira, que hoje é presidente da CNSeg (Confederação Nacional das Seguradoras), citando o avanço do banco em passar a estruturar projetos de infraestrutura, em vez de apenas liberar financiamentos.
O economista Carlos Antonio Rocca, coordenador do Centro de Estudos do Financiamento das Empresas Brasileiras da Fipe (Cefeb-Fipe), reforça que entre a gestão Dilma e a atual houve avanço na governança do banco. Até 2015, segundo ele, o BNDES atuava como competidor do mercado de capitais, sufocando sua expansão.
O novo posicionamento, segundo ele, transformou o BNDES naquilo que dele se espera - preenchendo parte do espaço onde o mercado de capitais não atua, como de financiamento de PMEs, projetos de muito longo prazo, como saneamento, ou de áreas que exijam algum grau de subsídio estatal.
Rocca destaca que essas mudanças no BNDES ocorreram em meio a grandes inovações regulatórias do Banco Central, citando o cadastro positivo e toda a parte de banking como exemplos.
“O sistema financeiro como um todo melhorou em sua funcionalidade, na capacidade de alocação de recursos, avançando na gestão de riscos de crédito, digitalização, com as fintechs, e na redução de custos operacionais, tudo isso impulsionou o mercado de capitais e aumentou a concorrência”, afirma Rocca.
Como resultado, o BNDES - que representava em torno de 20% da composição do exigível financeiro das empresas brasileiras no biênio 2014-2015 -, viu essa participação cair para 6%, um espaço que foi ocupado pelo mercado de capitais.
O segmento de financiamentos de infraestrutura é o que mais reflete o avanço do mercado de capitais em relação ao BNDES dos velhos tempos, puxado principalmente pela demanda de pessoas físicas, que têm isenção de Imposto de Renda nos investimentos em papéis do setor.
Segundo levantamento da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), as emissões de debentures incentivadas para infraestrutura somaram R$ 96,1 bilhões entre janeiro e setembro de 2024, volume 213% maior que os R$ 30,7 bilhões em créditos ao segmento desembolsados pelo BNDES.
Mesmo assim, a atual gestão do BNDES deu mostras de retomar ao menos parte da estratégia de dez anos atrás, subsidiando grandes empresas e apostando na industrialização. Marcos Mendes, do Insper, lembra que o BNDES fez alarde em anunciar investimentos em inovação.
“Seria válido financiar empresa nova, que está surgindo, com ideias que não existem no mercado, mas ao conferir o perfil de quem está recebendo financiamento de inovação estão lá Embraer, Volkswagen e grandes empresas de produção de medicamentos”, diz o economista.
Ele também critica a priorização de financiamentos do banco para o programa Nova Indústria Brasil, para o qual o governo prometeu liberar R$ 300 bilhões até 2026, dos quais o BNDES já aprovou R$ 190 bilhões.
A nova política industrial brasileira estabelece como prioridade metas de autossuficiência – incluindo exigência de conteúdo nacional - e não metas de produtividade ou exportação, o que reforça a visão protecionista do programa.
“É um modelo que segue sustentando uma indústria ineficiente”, diz Mendes. “Há vários países que se tornaram desenvolvidos sem passar pelo subsídio e proteção da indústria de transformação, como Austrália, Noruega, Chile e Cingapura, que se consolidou como potência comercial.”
"Operações reembolsáveis"
Procurado pelo NeoFeed, o BNDES, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que divulgará resultado financeiro e desempenho operacional atualizados referentes ao ano de 2024 em breve. Sobre as estratégias da nova gestão, indicou declarações da diretoria do BNDES durante apresentação dos resultados do terceiro trimestre, em setembro do ano passado.
Na ocasião, Mercadante destacou a “evolução e resultados consistentes” do banco, com crescimento sustentável do crédito oferecido pelo BNDES, sendo a ampla maioria, cerca de 80%, à taxa de mercado.
Já Nelson Barbosa, diretor de Planejamento e Relações Institucionais, respondeu às críticas - que já começavam a aparecer - de temores sobre um crescimento desmensurado do BNDES. Segundo ele, o banco está voltando ao seu tamanho padrão, que tinha antes da crise de 2008.
“Um tamanho menor do que tinha em 2002”, disse Barbosa na época. “Não é um tamanho nem excessivo, nem pequeno. Então, qualquer comparação do BNDES de agora com o dos anos 2008-15 é infundada. Quem diz isso não sou eu, são os números", afirmou.
Sobre a adoção da política parafiscal pelo governo usando o BNDES, o Ministério da Fazenda enviou por meio de sua assessoria de imprensa uma nota, com o seguinte esclarecimento:
“Operações reembolsáveis, como as realizadas via fundos, não devem ser classificadas como parafiscais, pois são executadas dentro do orçamento público, com total transparência e seguindo as regras fiscais e contábeis vigentes. A caracterização de operações reembolsáveis como ‘despesas fora do orçamento’ é um equívoco conceitual, uma vez que tais operações são registradas dentro do orçamento público e seguem os ritos orçamentários estabelecidos. Esse tipo de imprecisão pode levar a uma interpretação incorreta da condução da política fiscal e do impacto dessas operações nas contas públicas.”